Para o provincianismo há só uma terapêutica: é o saber que ele existe. O provincianismo vive da inconsciência; de nos supormos civilizados quando o não somos, de nos supormos civilizados precisamente pelas qualidades por que o não somos. O princípio da cura está na consciência da doença, o da verdade no conhecimento do erro. Quando um doido sabe que está doido, já não está doido. Estamos perto de acordar, disse Novalis, quando sonhamos que sonhamos.Fernando Pessoa Textos de Crítica e de Intervenção
Acordava, olhava, percebia e escrevia. O que escreveu esclarece e forma. A Língua Portuguesa sofisticou-se. Fernando Pessoa tornou-a sua pátria. O contexto em que escreveu "Minha pátria é a língua portuguesa" foi de grande desilusão com o mundo. O homem que parecia perceber tudo, não percebia — ou fingia que não percebia — o seu tempo em sociedade. "Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo, ou menos certo?", escreveu com a caneta de Álvaro de Campos. Também o provincianismo o incomodava. A falta de curiosidade dos seus contemporâneos em tudo o que existia para além do horizonte percetível incomodava-o. Há quem queira ficar apenas no seu território. Orgulhosamente sós, como desejava a tal criatura que o parolo que lidera os novos fascistas na Assembleia da República escolheu para sua referência de ajustamento.
Atrevo-me a não concordar com Pessoa, e, parafraseando-o, desminto-o: A minha pátria é o chão do mundo. É aí que me sinto acompanhado, perto de todas as línguas, trajes e sabores que o mundo solidário abraça. O provincianismo, o bairrismo amiguista, o nacionalismo cruel não são rapé da minha caixa. José Afonso, outro descontente com essa serôdia ideia de provincianismo, escreveu para uma música: "Há quem viva sem dar por nada, há quem morra sem tal saber". Tal como o doido que não sabe que é doido, o provinciano não sabe que o melhor da sua terra não são as estradas que vão lá dar, mas sim todos os caminhos que de lá saem e, dando a conhecer o melhor da sua terra, procuram o melhor nos outros lugares onde a autenticidade cultural foi desenvolvida pelos que lá estão. Os outros não são inimigos; são diferentes e assim devem continuar a ser quando convivem com os outros, que para eles somos nós. Nós somos sempre diferentes dos que estão no lugar onde fomos parar. E é nessa diferença que somos todos iguais. É esse cosmopolitismo que nos une e permite a diversidade. É nesse território que me situo e me sinto bem. É aí que escolhi estar. E é onde estou.
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