segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Os três duques


Lembram-se? Era uma série americana televisiva muito manhosa, só ultrapassada em ridículo, um pouco  mais tarde, pelos shows de Donald Trump. Lá como cá, é das televisões que parece saírem agora os candidatos a Presidentes. Apeteceu-me fazer esta comparação: "Só me saem é duques", diz-se por cá quando a sorte não espreita. É a nossa má sorte.

O crescimento da direita mais extrema em Portugal faz-me lembrar estes direitolas televisivos. Já tivemos um primeiro-ministro que, não sabendo ler nem escrever, só se gabava de saber contar. Esse iletrado ser humano é agora considerado pelo comentador do reino dos grunhos o melhor primeiro-ministro em democracia. O pequeno comentador — acreditem: não é ironia aplicada à sua pequenez física. A avaliação física não é castanha do meu cartucho — chega-se à frente como o mais compreensivo dos comentadores-avaliadores de paróquia. A homilia é propalada aos domingos à noite, depois das notícias que a SIC seleciona. O paroquial comentador elogia à esquerda e à direita. Pisca o olho ao centro, e compreende a extrema-direita. Quer ver se cai nas graças do seu eleitorado básico - também não é ironia. Elogia o que é lamentável, pondo-se assim em bicos-de-pés para que os seus seguidores o lancem para a frente de batalha eleitoral. As banalidades e sugestões de exercícios políticos surgem como estratégia. Marcelo Rebelo de Sousa é inspiração. Foi como opinador especializado nestes conteúdos nada especiais que se tornou Presidente. Um dos mais lamentáveis presidentes, diga-se, e aqui não há ironia de espécie alguma. 

Se o agora opinador de serviço vier a habitar o palácio de Belém, o PPD/PSD, partido de onde sairam quase todos os cinquenta deputados fascistas que vegetam no parlamento, passa a ser o partido que mais apetrechos angaria para valorizar o Museu da Presidência. A direita já anda a reunir as sobras. A tralha cavaquista começa a sair dos baús infectos. São três peças rascas para exibição em museu serôdio e triste. Fica a memória triste.

facebook

Design de comunicação

Da série Grandes Primeiras Páginas. Página/12. Buenos Aires.



A apologia do crime não começou agora com os "patriotas" lusos Ventura, Pinto e mais o fedelho malcriado. Bolsonado, Trump e Duterte já experimentaram com sucesso sinistras propostas eleitorais. O inenarrável Milei, tão apoiado pelos extremistas neoliberais portugueses, está a fazer estragos na Argentina. É um criminoso no poder. Ou seja: o povo, essa estranha abstração, anda a preferir criminosos. Aqui em Portugal, há quem ache que devemos respeitar o partido fascista porque tem deputados eleitos pelo povo. São muitos. Cinquenta energúmenos fazem muito estrago. São eleitos por energúmenos. Tornam o parlamento infrequentável. Respeitá-los?! Era o que faltava.

sábado, 26 de outubro de 2024

Receituário

AS PALAVRAS, A MÚSICA, A ATITUDE | Vou participar no CONGRESSO INTERNACIONAL JOSÉ AFONSO, neste domingo, a partir das seis da tarde. Gosto sempre de falar de José Afonso, mas gostei muito mais de falar com ele. Conheci o seu trabalho antes de saber que ele morava em Setúbal, muito perto da casa dos meus pais, onde eu então morava. Ouvir "Vejam bem", e todas as outras músicas do álbum "Cantares do Andarilho" abriu-me a cabeça e os olhos. E até hoje fiquei nesse estado: cabeça e olhos abertos.

A audição daqueles sons diferentes de tudo o que até aí me tinha passado pelas orelhas provocou-me uma insistente curiosidade intelectual e um profundo desprezo pela música romântico-sexista que os cantores manhosos então trauteavam para desespero dos nossos sentidos. Perdi definitivamente a pachorra para a foleirada vigente. Ganhei vontade de perceber a razão daquela diferença de concepção artística. Percebi a genialidade. E percebi a vontade de mudar. Tudo mudou com a chegada de José Afonso às nossas vidas. Essa percepção é universal e atravessa gerações. A intemporalidade da obra de José Afonso marca os nossos dias. As recentes reedições provam-no.
O conhecimento pessoal de um ser humano que é uma referência na cultura e na atitude cidadã foi um privilégio. Hoje vou conversar com o Henrique Guerreiro e com a Luísa Ramos sobre os tempos em que convivemos com José Afonso na cidade e não só. Temos coisas para dizer, garanto. O que for soará. Até já.

Odiar não é preciso

A manifestação contra o racismo foi enorme em emoção e participação popular. Não foi contra ninguém mas sim pela ideia de que devemos caber cá todos.

Ventura vociferou ódio. Gritou imbecilidades e tentou vitimizar-se. É óbvio que pretende ser um novo santo mártir dos imbecis.
A manifestação do partido fascista juntou poucas dezenas de energúmenos. Foram poucos mas ruidosos. Os fascistas gritam muito e fazem pouco. Pretendem anular tudo. Só mesmo o ódio os mobiliza.
A rejeição do ódio mobiliza mais pessoas do que a sua apologia.

GIGANTRUMP

O livro conta a história de um fulano que vocifera contra tudo e todos e a todos trata mal. Há quem veja ali semelhanças com o cretino que pode vir a ser pela segunda vez presidente da nação mais influente do mundo. Daniel Tercio escreveu a história, joão Tércio ilustrou. O primeiro lançamento foi ontem, na Gigões & Anantes, livraria mítica que Francisco Vaz da Silva dinamiza. É em Aveiro e merece visita. Foi uma sessão bem frequentada e bem participada. Um fim de tarde bem vivido.

O livro vai estar à venda em livrarias a divulgar, e também em vendas online. Dia 23 de novembro há apresentação na Festa da Ilustração - Setúbal, no espaço João Paulo Cotrim.

sexta-feira, 25 de outubro de 2024

Receituário

GIGANTRUMP é a primeira experiência editorial da marca Elefante impanciente da Estuário editora. É uma história escrita entre Tércios: Daniel escreveu e João desenhou. Vai ser feita uma primeira apresentação hoje em Aveiro. É às seis da tarde. Eu vou estar lá a dar ao badalo com o Daniel Tércio, com o João Tércio e com o Francisco Vaz da Silva, que é o mentor da ideia Gigões & Anantes.

O Livro será posteriormente apresentado na Festa da Ilustração - Setúbal, dia 9 de novembro. E em outros sítios a anunciar. Também vai estar à venda em locais a anunciar. Até já.

quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Do esgoto

"Se atirassem mais vezes a matar, o país estava na ordem", diz o taberneiro que é líder parlamentar do partido fascista. O líder máximo pede mesmo condecoração para quem mata. Inclinados para a apologia do crime do estado, para o exercício da ditadura e da acção pela força contra a inteligência, perderam o pingo de vergonha que ainda lhes escorria pela face inundada de ódio. O parlamento português está infrequentável. Esta gente é abjecta. Cinquenta fascistas na Assembleia da República, sem qualquer sem qualquer respeito pela democracia, são uma vergonha internacional. Temos ali sentados cinquenta energúmenos que vociferam e esbracejam num constante delírio psicótico. Chamar-lhes porcos ofende a inteligência suína. Chamemos-lhes apenas fascistas. E combatamo-los. São criminosos delinquentes encartados.

quarta-feira, 23 de outubro de 2024

O silêncio do corpo

Marina Abramović nasceu na Sérvia, mas saiu para o mundo com vontade de o abraçar com o seu próprio corpo. “The Artist Is Present”, que desenvolveu durante 90 dias e 700 horas no MOMA de Nova Iorque, é o seu trabalho mais saliente. Marina estava sentada numa sala enorme do museu. Só. Uma mesa e duas cadeiras simples, bem desenhadas, eram os adereços necessários para a performance. A artista permanecia imóvel, olhando quem se sentava à sua frente, desafiando as mais variadas reacções de um público curioso e com vontade de ali estar. Indiscretas câmeras de vídeo e flashes permanentes esclareciam que a coisa não seria totalmente efémera. Intimidavam, é claro. Filas de pessoas formavam-se durante todo o horário de funcionamento do museu. Desafio e experiência sem par.

“The Artist Is Present” tornou-se o trabalho mais comentado, apesar de muitos outros serem mais desafiantes dos limites físicos e intelectuais do corpo humano. Surpresa para ela e para todos os presentes: Ulay, seu companheiro na arte e na vida, apareceu por lá. Tiveram uma relação intensa durante doze anos, mas não se viam há vinte. O fim da relação com o fotógrafo e artista alemão foi perturbador. A experiência nesta performance desafiou emoções. A contenção durou o suficiente para que uma revisão rápida de um passado tão intenso fosse ultrapassado por um gesto de aproximação: Marina estendeu as mãos a Ulay por um brevíssimo momento em gesto carinhoso. Cedeu. Todo um passado perturbador parecia perdoado. Um cumprimento que é uma revelação de humildade, de reencontro sem reaproximação.

É preciso ceder e tentar perceber o erro. E se o erro permanece e insiste a vida acontece na mesma. Segue indiferente ao erro. Não temos que ser sempre vencedores. Desistir é legítimo. Quem não pode descarrega, dizem os sábios de outros tempos. A exposição pública contornada por um silêncio ensurdecedor provoca reacções diferentes entre quem se expõe. Se existe um passado, o presente torna-se mais denso: assustador, talvez, mas revelador das manchas da intimidade que ficam instaladas no corpo: causam ardor, doem, arrepiam e arrefecem, expressando-se por todos os poros. A vida de quem reconhece o erro é muito mais saudável do que a de quem insiste na sua verdade mentirosa. 

Abramović expõe o seu corpo como objecto da sua Arte. Em “The Artist Is Present” o desafio cumpriu-se de maneiras diferentes para quem participou. O tempo, o silêncio, a exposição sem privacidade alguma inundam a cabeça de quem vive os dias das suas vidas só, de uma maneira diferente de quem está com muita gente. A observação, o espectáculo, transforma-se em dialéctica indecifrável para quem está de fora. Aquela performance desatou laços que sustentavam raminhos de atitudes perante a vida e os seus momentos de todos os dias: rotinas, atropelos, surpresas, tempos de felicidade entram em turbilhão. Um turbilhão de pensamentos que surpreendeu muitos dos praticantes. Esse é o desafio que Marina Abramović faz a si mesma e aos que conseguem o privilégio de a ter pela frente. Em outras acções artísticas chegou a desafiar os limites da resistência física. A morte é um limite. Temê-la é uma reacção natural. Conviver com essa compreensão é Arte para Marina Abramović. Gosto tanto de quem vive a observação e a prática artística com o corpo todo. Gosto tanto de Marina Abramović.

facebook

terça-feira, 22 de outubro de 2024

O fumo e o fogo

Um policia matou Odair. Odair Moniz tinha filhos menores, era respeitado, pretendia ter uma vida como todos nós. Tinha um negócio no bairro. Foi assassinado por um agente fardado que acha que pode matar. A polícia actua sempre a matar. Parece que lhes está no sangue ver sangue. Em tempos, um primeiro-ministro que agora é secretário-geral da ONU dizia que "num país civilizado a polícia não pode matar". O actual primeiro-ministro tenta esgotar a agenda da extrema-direita e torna razoável o ataque racista. O presidente da Câmara de Lisboa também quer polícias a "corrigir" delinquências de pacote sem se aperceber dos problemas que poderiam surgir com a execução desses poderes. A direita é sempre assim: protege os de cima contra os de baixo. Não somos todos iguais. Nem os primeiro-ministros, nem os representantes autárquicos. 

No Zambujal, Amadora, onde agora aconteceu este crime, a população está revoltada. Estamos em sítio de actuação permanente da polícia, que não o faz em outros sítios onde outra gente "de bem" vive e faz porcaria mas sempre protegida pelos seus colarinhos engomados. Claro que não se justifica esta acção violenta. Nunca se justifica a violência. Mas acontece que a extrema-direita veio justificar o crime fascista. O fascista que comanda os cinquenta fascistas que vegetam no parlamento actua no estrado mediático sempre que algo mais incompreensível surge nos monitores televisivos. Veio normalizar o discurso racista. Nas redes sociais a extrema-direita sai em aplauso dos crimes policiais. Querem o polícia assassino condecorado. 

Os repugnantes fascistas mentem e manipulam sem freio. É preciso que a polícia que actua nestes locais seja bem formada. É preciso que saiba reagir perante os menos protegidos como reage perante os protegidos pelo colarinho branco. António Guterres, primeiro-ministro na altura em que um ataque  policial racista aconteceu, tinha razão: a polícia num regime republicano e democrático tem de ser civilizada. Acrescento: a polícia deve ser factor de segurança mas percebendo que somos todos diferentes. É assim que se faz em sítios civilizados.  A extrema-direita fascista tem de ser erradicada das polícias, onde está fortemente implantada nos quartéis e cabeçoras dos agentes. PSP e GNR actuam como forças militares do partido fascista que vegeta no parlamento.

O polícia que matou um homem honesto é um criminoso. Não é bonito de se ver o que sucedeu a seguir, mas a violência é a espoleta de mais violência. Nas televisões já se ouvem "especialistas" que "dão aulas" a futuros agentes dizerem que "se o agente acertou na axila é porque não queria matar". Onde é que estas criaturas aprenderam estas teorias científicas? O papel da polícia não é atirar sobre ninguém. A polícia deve evitar estas situações. Nunca incentivá-las, nem justificá-las.
A extrema-direita fascista não se normaliza. Combate-se. Os polícias fascistas não são civilizados. São racistas, homofóbicos, sexistas, incivilizados. Com esta gente ninguém está em segurança. Vivemos tempos preocupantes. Mesmo.

ILUSTRAÇÃO PORTUGUESA | É uma das maiores exposições da Festa da Ilustração. Grande em dimensão e em sentimento: recorda sempre João Paulo Cotrim, criador do projecto. A edição deste ano é de redobrado sentimento: homenageia especificamente José Afonso, a sua música e a sua atitude. Hoje ficam aqui mostradas três das dezenas de ilustrações que povoam A Gráfica - Centro de Criação Artística. Trabalhos de André Carrilho, Gonçalo Duarte e Nuno Saraiva. E também o texto que escrevi no Jornal da Festa, que abre com dois textos de José Afonso inebriados de uma actualidade que até mete impressão.

Canto a fome de justiça
Canto o mistério das horas
Canto o crime amaldiçoado
No folhetim radiofónico
Canto o amigo em apuros
E a canícula da manhã
Os louros do falso médico
O congresso dos metais
Canto Virgínia sentada
Canto tudo canto nada
José Afonso. Antologia poética
Lá para o reino da Arábia
Havia amêndoas aos centos
Que grande rebaldaria
E a Palestina às escuras
Os sheikes israelitas
Já que estou com a mão na massa
Lembram-me os sheikes das fitas
Que dão porrada a quem passa
José Afonso. Venham mais cinco. 1973

JÁ O TEMPO SE HABITUA A ESTAR ALERTA
As metáforas dos textos de José Afonso perdem-se no tempo. Alastram até hoje e parece que vão ficar a alertar-nos para as agressões a esta realidade que insiste em existir.
Lembramo-nos de José Afonso não só pela grande qualidade da sua música, mas também pelo sentido que impunha aos seus textos.
José Afonso ilustrou com sons os textos que escreveu. As músicas que compôs inscrevem-se nos nossos sentidos. Cravam-se no corpo. Sentimos o ritmo destas melodias como safanões. O corpo estremece. A terra treme. Ouvimos estes textos com um arrepio. O seu trabalho como artista e como cidadão continua a ser um exemplo.
Os artistas que participam nesta alusão ao músico, expõem as suas metáforas visuais. São interpretações da realidade que os cerca. São opiniões. São atitudes. A qualidade destes trabalhos são farpas espetadas na mediocridade. Comemoramos a liberdade nestes cinquenta anos da revolução de 25 de Abril de 1974. José Afonso cantou a fraternidade e a igualdade como
senhas. Cantou a emergência do tempo. Cantou alertas. Disse o que nos faz falta. Cinquenta anos depois, e depois de tanta conquista, ainda é preciso dizermos o que faz falta: o que faz falta é avisar a malta. Malta avisada.







segunda-feira, 21 de outubro de 2024

A presença das formigas

A Festa da Ilustração - Setúbal reedita a exposição concebida e exibida na Casa Da Cultura em 2017. A alusão às capas dos discos de José Afonso é agora motivo de visita à galeria de exposições temporárias do Museu de Setúbal/Convento de Jesus.
Escrevinhei o texto que se desenrola por aí abaixo para o Jornal da Festa. Partilho-o agora aqui, porque nunca é excessivo recordar a importância destes objectos estéticos que brilham não só musicalmente, mas também visualmente.

Vamos voltar a olhar  para as capas dos discos de José Afonso. Vamos conviver com a excelência visual. Perceber o design como comunicação.

Esclareço: José Afonso foi pioneiro. Inaugurou uma nova maneira de fazer música. Também foi pioneiro na apresentação visual do seu trabalho. Num tempo em que as capas que envolviam os discos se limitavam a reproduzir a fotografia do autor, partindo do princípio que era a imagem do cantor que vendia, José Afonso convocou designers contemporâneos .  Vão aqui estar os treze álbuns originais que José Afonso gravou. Há mais discos, é claro — singles, EPs e também gravações pontuais de solidariedade — mas estes são os originais concebidos com a exigência e o rigor do trabalho do artista na relação com todas as componentes de produção. Vamos olhar e ver. 


José Afonso escreveu e cantou músicas novas. Mudou o mundo da música portuguesa. E mudou o nosso mundo, com as suas atitudes como cidadão interventivo. Para a divulgação do seu trabalho convidou competentes designers para vestir os LPs que ía lançando para nosso prazer e sorte. José Santa Bárbara foi o mais convocado. São dele o redesign das capas de “Cantares do Andarilho” e  de “Contos velhos Rumos Novos”. Depois do inicio de actividade dessa alfaiataria, passou a vestir os trabalhos originais de José Afonso que eram editados nos finais dos anos. Concebeu originalmente “Cantigas do Maio”, “Venham mais cinco” e “Traz outro amigo também”. Mais tarde, já com a liberdade a marcar o nosso tempo, desenhou “Enquanto há força”, “Fados de Coimbra e Outras Canções” e “Como se fora seu filho”. O trabalho de José Santa-Bárbara é de grande qualidade estética e envolve a exigente estética do autor musical mais importante que viveu no nosso tempo.


Em Abril de 2017 ocupámos as paredes da Casa da Cultura com uma grande exposição sobre o trabalho gráfico na obra de José Afonso. Chamámos à mostra “Mas quem vencer esta meta que diga se a linha é recta”. Estiveram presentes os autores mencionados. João de Azevedo também, é claro. Conheci-o em 2013. Só lhe atribuía o pormenor de ter feito a capa do disco “Com as minhas tamanquinhas”. Percebi que é um homem cheio de mundo. Convidei-o para desenvolver a ideia iniciada nas “Tamanquinhas”, com o sentido de fazer uma exposição na Casa Da Cultura. Aceitou o convite e entusiasmou-se. O resultado foi uma exposição transbordante de alegria e emoção. Em Maio de 2015 João de Azevedo expunha pela primeira vez o trabalho que desenvolveu à volta da capa desse álbum.


Roma/Setúbal na capa de um disco

Quando José Afonso convidou João de Azevedo para conceber graficamente a capa do disco, havia uma grande distância a separá-los. João estava em Itália, José Afonso em Setúbal. A encomenda foi feita com a tecnologia possível na época: telefone fixo. José Afonso ligou ao João solicitando a tarefa. O briefing foi feito assim: José Afonso cantarolou ao telefone a música que dá nome ao álbum e descreveu a ideia geral da coisa. Entendido o pretendido, João envia de Roma para Setúbal, por correio, o resultado final, com três hipóteses para escolha. A ilustração mantinha-se, mas os fundos eram à escolha do freguês José Afonso. Um era azul mais ou menos turquesa, outro era num amarelo assim para o torrado, e a terceira escolha era o rosa vivo que veio a ser escolhido pelo dito freguês. Esta história foi-me contada pelo João. Sei que José Afonso ficou radiante com este trabalho. Disse-mo a mim. Eu também gosto muito desta capa. E das outras todas.


O álbum “Com as minhas tamanquinhas” saiu em 1976. É o trabalho mais directamente político de José Afonso. Andam por lá denúncias, ironias, gozos tremendos. Os desenhos de João de Azevedo documentam essas preocupações e desejos, agora que estas músicas únicas e intemporais voltam a circular nos pratos dos gira-discos, nos leitores de CDs, nas plataformas musicais, nos nossos sentidos.  Muito obrigado, João de Azevedo.


NOTA: João de Azevedo faleceu em 2020. Daí esta menção específica à sua amizade com José Afonso.


A PRESENÇA DAS FORMIGAS

OBRA GRÁFICA NA OBRA DE JOSÉ AFONSO

Museu de Setúbal/Convento de Jesus

Exposição integrada na Festa da Ilustração, Setúbal


Imagem do interior da capa de Coro dos Tribunais

Ilustração e design de José Brandão

Design de José Santa-Bárbara

Ilustração e design de Alberto Lopes


domingo, 20 de outubro de 2024

Eu vou ser como a toupeira, que esburaca

Há música na pintura de António Sena. Não é por acaso que trago para aqui a frase de José Afonso. A maneira como o músico desenhava os sons que pretendia tornar audíveis fazem lembrar a pintura de Sena. Alberto Lopes, o autor do design de "Galinhas do Mato", integrou maquetas musicais de José Afonso tornando-as expressão estética. António Sena faz os seus trabalhos como se fossem esboços de uma ideia a completar, mas fica-se por aí, porque a aplicação dessa ideia transpira emoção ao ponto de sugerir ao artista que pare. Não é de facilidade que se trata. É de percepção das realidades e das distâncias entre percepções do trabalho final.

Em Sena o trabalho não se completa. Todo o erro é sugestão visual. A facilidade afasta-o da procura, da inevitabilidade do erro. O risco que interroga fica na tela. A perfeição está nessa assumção. A perfeição é uma seca. O bonitinho é rasca. Piroso. Não há na obra de Sena registos de traço fácil. Existe contemplação, mas também procura e atitude.

Garatujos, riscos, manchas, líquidos escorridos, cores da terra, da natureza, caligrafias rápidas, apagamentos, escritas imperceptíveis que nos sugerem realidades complexas. Interrogações filosóficas? É isso. É como se o artista convocasse a filosofia para o ajudar. Foi um homem discreto, que tinha como meio de se expressar esta obstinada escrita. Este insistente rasgar. Um título para uma exposição de António Sena poderia ser o do trabalho mais filosófico de José Afonso: "Eu vou ser como a toupeira". Porquê? Porque o artista visual esburacou até mais não. Raspou até não puder mais. E há melodia naquelas telas. Uma melodia interrogativa e áspera, como o mundo.

António Sena morreu no dia 16 de outubro. Esta opinião é feita em jeito de homenagem e de grande respeito pelo seu exemplo como artista e ser humano.