quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

Passear em silêncio

Miguel Navas
inventa outras paisagens. Nem precisa de observar a realidade próxima para ver e perceber o que nos quer transmitir. Diz-nos com o seu olhar representado nestas telas que a paisagem que observamos é única. Só nós vemos o que ali está. O pintor mostra-nos assim a sua própria maneira de encarar estas novas realidades ali reveladas. A pintura tem esta vantagem: melhora a realidade. 

É como a literatura. Estas telas são páginas de uma publicação em execução. Passeamos por estes ambientes percebendo diferenças. São os novos olhos de que fala Proust. Os tons ocre, os azuis, os verdes densos e esbatidos, os tons neutros, denotam a preocupação em se alterar a realidade com sugestões de uma outra leitura, uma outra maneira de olhar a paisagem sugerida ao nosso olhar. 


As imagens que o artista recolhe em ambientes que referem ora o óbvio, ora o inesperado, parecem ser ensaios para a experiência maior que é a pintura acabada. Sombras, objectos que se sobrepõem em situação de abandono, imagens brutas que se transformam pela sua observação em aparência sofisticada, são o modelo que forma uma certa maneira de pensar a arte. Para Miguel Navas a Arte com A em caixa alta é esta acumulação de sobras. A urbe fornece a ideia para o ambiente criativo, e o artista encontra aí os tinteiros para os seus pincéis, trinchas e espátulas. Telas de uma intensidade viajante que nos apelam a um deambular sem guia. Sentimo-nos guias nestas paisagens tão novas que parecem novos trilhos para um renovado passeio. Sentimos-nos livres de expressar sentimentos, preocupações, atitudes. 

A beleza instalou-se. A liberdade está a passar por aqui, como diria o Sérgio.


O auto-retrato representa o laboratório de Miguel Navas. Experimenta com a sua imagem a utilização dos materiais. Insinua, sem medo de desagradar, traços e pinceladas. Estes retratos revelam ousadias. Não existe aqui a necessidade fotográfica, mas o artista está sempre lá. Parecido com o real mas simultaneamente distante. É este afastamento das realidades que molda o trabalho de Navas. O esforço compensa. Observar estes esboços de retratos em evolução experimental anima-nos. Dentro do possível, é claro. Uma atormentada ideia de caos rodeia-nos. Esta pintura afasta-nos desse tormento. Estas paisagens são muito frequentáveis. Em território de percepções não confirmadas, em que “Há quem viva sem dar por nada / Há quem morra sem tal saber”, como percebeu José Afonso, frequentarmos os ambientes que nos fazem reflectir fornece-nos novos rumos para o futuro. Pelo menos é o que eu sinto. 


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