Marina Abramović nasceu na Sérvia, mas saiu para o mundo com vontade de o abraçar com o seu próprio corpo. “The Artist Is Present”, que desenvolveu durante 90 dias e 700 horas no MOMA de Nova Iorque, é o seu trabalho mais saliente. Marina estava sentada numa sala enorme do museu. Só. Uma mesa e duas cadeiras simples, bem desenhadas, eram os adereços necessários para a performance. A artista permanecia imóvel, olhando quem se sentava à sua frente, desafiando as mais variadas reacções de um público curioso e com vontade de ali estar. Indiscretas câmeras de vídeo e flashes permanentes esclareciam que a coisa não seria totalmente efémera. Intimidavam, é claro. Filas de pessoas formavam-se durante todo o horário de funcionamento do museu. Desafio e experiência sem par.
“The Artist Is Present” tornou-se o trabalho mais comentado, apesar de muitos outros serem mais desafiantes dos limites físicos e intelectuais do corpo humano. Surpresa para ela e para todos os presentes: Ulay, seu companheiro na arte e na vida, apareceu por lá. Tiveram uma relação intensa durante doze anos, mas não se viam há vinte. O fim da relação com o fotógrafo e artista alemão foi perturbador. A experiência nesta performance desafiou emoções. A contenção durou o suficiente para que uma revisão rápida de um passado tão intenso fosse ultrapassado por um gesto de aproximação: Marina estendeu as mãos a Ulay por um brevíssimo momento em gesto carinhoso. Cedeu. Todo um passado perturbador parecia perdoado. Um cumprimento que é uma revelação de humildade, de reencontro sem reaproximação.
É preciso ceder e tentar perceber o erro. E se o erro permanece e insiste a vida acontece na mesma. Segue indiferente ao erro. Não temos que ser sempre vencedores. Desistir é legítimo. Quem não pode descarrega, dizem os sábios de outros tempos. A exposição pública contornada por um silêncio ensurdecedor provoca reacções diferentes entre quem se expõe. Se existe um passado, o presente torna-se mais denso: assustador, talvez, mas revelador das manchas da intimidade que ficam instaladas no corpo: causam ardor, doem, arrepiam e arrefecem, expressando-se por todos os poros. A vida de quem reconhece o erro é muito mais saudável do que a de quem insiste na sua verdade mentirosa.
Abramović expõe o seu corpo como objecto da sua Arte. Em “The Artist Is Present” o desafio cumpriu-se de maneiras diferentes para quem participou. O tempo, o silêncio, a exposição sem privacidade alguma inundam a cabeça de quem vive os dias das suas vidas só, de uma maneira diferente de quem está com muita gente. A observação, o espectáculo, transforma-se em dialéctica indecifrável para quem está de fora. Aquela performance desatou laços que sustentavam raminhos de atitudes perante a vida e os seus momentos de todos os dias: rotinas, atropelos, surpresas, tempos de felicidade entram em turbilhão. Um turbilhão de pensamentos que surpreendeu muitos dos praticantes. Esse é o desafio que Marina Abramović faz a si mesma e aos que conseguem o privilégio de a ter pela frente. Em outras acções artísticas chegou a desafiar os limites da resistência física. A morte é um limite. Temê-la é uma reacção natural. Conviver com essa compreensão é Arte para Marina Abramović. Gosto tanto de quem vive a observação e a prática artística com o corpo todo. Gosto tanto de Marina Abramović.
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