domingo, 20 de outubro de 2024

Eu vou ser como a toupeira, que esburaca

Há música na pintura de António Sena. Não é por acaso que trago para aqui a frase de José Afonso. A maneira como o músico desenhava os sons que pretendia tornar audíveis fazem lembrar a pintura de Sena. Alberto Lopes, o autor do design de "Galinhas do Mato", integrou maquetas musicais de José Afonso tornando-as expressão estética. António Sena faz os seus trabalhos como se fossem esboços de uma ideia a completar, mas fica-se por aí, porque a aplicação dessa ideia transpira emoção ao ponto de sugerir ao artista que pare. Não é de facilidade que se trata. É de percepção das realidades e das distâncias entre percepções do trabalho final.

Em Sena o trabalho não se completa. Todo o erro é sugestão visual. A facilidade afasta-o da procura, da inevitabilidade do erro. O risco que interroga fica na tela. A perfeição está nessa assumção. A perfeição é uma seca. O bonitinho é rasca. Piroso. Não há na obra de Sena registos de traço fácil. Existe contemplação, mas também procura e atitude.

Garatujos, riscos, manchas, líquidos escorridos, cores da terra, da natureza, caligrafias rápidas, apagamentos, escritas imperceptíveis que nos sugerem realidades complexas. Interrogações filosóficas? É isso. É como se o artista convocasse a filosofia para o ajudar. Foi um homem discreto, que tinha como meio de se expressar esta obstinada escrita. Este insistente rasgar. Um título para uma exposição de António Sena poderia ser o do trabalho mais filosófico de José Afonso: "Eu vou ser como a toupeira". Porquê? Porque o artista visual esburacou até mais não. Raspou até não puder mais. E há melodia naquelas telas. Uma melodia interrogativa e áspera, como o mundo.

António Sena morreu no dia 16 de outubro. Esta opinião é feita em jeito de homenagem e de grande respeito pelo seu exemplo como artista e ser humano.

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