Éramos felizes porque fazíamos coisas. Claro que não o sabíamos. A felicidade não entrava no nosso vocabulário porque estávamos a lutar por ela. E isso sabíamos.
O Circulo Cultural de Setúbal foi fundado por um grupo de gente cultural e politicamente esclarecida que, mesmo antes de abril de 1974, mostrou à cidade que o pensamento não deve ser único e de reconhecimento dos poderes, mas sim de agitação das mentalidades. O salutar conflito é o sal da democracia. A estimulação da curiosidade intelectual fornece-nos a exigência cívica e a sofisticação cultural. Depois de Abril a coisa aqueceu. O facto de José Afonso ser um dos fundadores deu-nos fôlego e preencheu-nos a agenda.
A minha adolescência foi passada de um lado para o outro em ambientes de todas as cores e feitios: convívios de solidariedade, jantares entre amigos até às tantas, copos (muitos copos: uma conversa e um copo é a receita ideal para se estar bem), encontros entre novos amigos, abraços (muitos, também), envolvimentos amorosos (lá teria de ser, acontece) e muita vontade de mostrar o que de novo se podia fazer no país Portugal. Em Setúbal, eu estava mergulhado na actividade do Círculo Cultural. O Círculo foi pioneiro na divulgação de uma certa cultura alternativa. A nossa missão era esquecermos os artistas manhosos da terra e lembrarmos o melhor que se fazia no mundo. A cidade está no mundo. Este cartaz que aqui reproduzo (dei com ele ontem, em arrumações no atelier) promovia uma peça do
Teatro da Comuna
. O Circulo organizou e tratou da logística. Eu, estudante com disponibilidade, acompanhei o grupo por todos os cantos da região — fábricas, bairros, colectividades — em gloriosa digressão. Fiz de tudo um pouco: telefonemas para contactos, distribuição de folhetos promocionais e alombei com caixotes, panos e estrados. Também bebi copos e colaborei em petiscadas com os actores e técnicos após representações. Os actores eram já de assegurado gabarito: Manuela de Freitas, Carlos Paulo, Francisco Pestana, Merlin Teixeira... Encenador: João Mota. Lembro-me de quase todas as récitas. Eu já quase sabia a peça de cor. A música final emocionava-me sempre (ainda a canto de carreirinha). Peça de combate e de esclarecimento político, os valores tradicionais eram ali postos em causa: a família conservadora, a religião, o futebol. O público não tinha visto até àquele dia nada assim. Os actores adaptavam argumentos ao sabor das reacções das pessoas. Cada representação era um espectáculo único. Foi tão bom. Fui tão feliz ali.