À SUPERFÍCIE DAS COISAS O PÓ | As pinturas de João Jacinto mostram o pó do mundo. Há ali uma vontade de alinhar um adejar que deambula pela superfície das coisas. Uma necessidade de compor o tempo. Ou talvez não. O artista procura esse pó. Dá-lhe os tons da vida despejando para as superfícies tinta e mais tinta. É esse o óleo da sua arte. Fernando Luís Sampaio, no poema que "ilustra" a exposição, fala em "névoa dos namorados". Namorar é bom. Vamos então namorar estas peças que João Jacinto expõe agora em Setúbal.
O parque desce sob o meu olhar
instável desce para o lago
onde florescem latas de cerveja, folhas
e a névoa dos namorados.
À superfície das coisas o pó
aquietado da vida, a poalha dos impropérios
o fumo do monte branco
a coroar, à hora da bica, a ave da juventude
que assobia canções combatentes.
Muita coisa começou assim, um punhal
a esmagar os sonhos, uma pedra a torcer
o primeiro amor contra o mundo.
Mais tarde, é sempre mais tarde, a morte
de amigos cuspiu de mim toda a cidade,
as ruelas que iam para o fontelo
escureceram também para sempre.
O silêncio, como o inferno, começa sempre
com os outros.
Fernando Luís Sampaio