segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Memorizar o futuro






O Museu de Setúbal está instalado num antigo convento. Foi agora reaberto com justificada pompa. É o monumento mais digno dessa designação na cidade. Tenho deste lugar mágico as melhores recordações. Passei lá bons momentos da minha juventude. 

Ali assisti — nos claustros — a invulgares representações teatrais. Recordo A Barraca, com D. João VI, em que Mário Viegas, Maria do Céu Guerra e Orlando Costa mostraram talento e Helder Costa experimentou adaptar o ambiente monumental à encenação e cenografia com excelente resultado final. Representação incluída no Festival de Teatro de Setúbal. O teatro era inquilino frequente dos claustros. O saudoso festival, concebido por Carlos César, mostrava no estrado as melhores companhias. Tão bom teatro testemunharam aquelas pedras. O verão em Setúbal era teatro e cinema de excepção. Depois do teatro, chegavam as fitas. Literal: as bobines eram levantadas na estação rodoviária pouco antes de passaram na máquina. Era no mês seguinte, e era a única maneira na altura de vermos filmes pouco divulgados nas salas. Qualidade, rigor na escolha. Era Pompeu José que liderava. Eu dava uma ajuda na imagem e no grafismo. Graficamente participei em muitos outros trabalhos para a galeria.

Também a música adicionou histórias à História do Convento de Jesus. Fausto, Sérgio Godinho, José Afonso e muitos outros deram ali concertos memoráveis. José Afonso referia mesmo esse concerto como um dos seus melhores. Recentemente foram reveladas fotografias inéditas do espectáculo, no roteiro publicado sobre a passagem do músico pela cidade. Foi Maurício Abreu o jovem e entusiasmado fotógrafo. Pessoalmente, sinto-me ligado a este convento desde que passou a espaço de animação na cidade. Organizei exposições na galeria de exposições temporárias. Reencaminho para aqui um texto que fiz em tempos sobre a exposição de Rogério Ribeiro: Foi meu professor. Foi meu amigo. No início dos anos oitenta do século passado, fez uma grande exposição de pintura na galeria de exposições temporárias do Museu. Ajudei-o a escolher as obras. De vez em quando perguntava-me: achas que este pode interessar às pessoas de Setúbal? Dizia isto com sinceridade. Sem falsas modéstias. Não queria desiludir. Desenhei graficamente o catálogo. Um dia fui lá com o José Afonso, que ficou impressionado com a mostra. Apresentei-os. Ficaram amigos. Quando terminou a exposição ofereceu-me dois desenhos que tenho ali emoldurados. Tão boa, a exposição do Rogério. Também fiz na Galeria de exposições temporárias uma instalação visual (em colaboração com Fátima Rolo Duarte e Luís Filipe Cunha) para o lançamento de O Teodolito, de Luiz Pacheco. Trabalho de grande subversão e loucura momentânea. Uma loucura, pois.

O monumento onde se aloja o Museu de Setúbal/Convento de Jesus foi agora recuperado. Esteve anos a fio em lume brando. Tudo começou há muito, muito tempo. Anteriores executivos tudo fizeram para que as coisas avançassem. O actual executivo camarário acabou por ficar com a batata quente na mão. Também tudo tentou e agora resolveu. Trabalho autárquico de gabarito que nos provoca uma interrogação: Se aqui foi assim, o que aconteceu então com outras desgraças que povoam a cidade? Já lá vamos. João Luís Carrilho da Graça encarregou-se de desenhar o futuro do espaço. Trabalho excelente. Tive a oportunidade de ali entrar em Maio do ano passado. Confesso que senti emoção ao olhar os interiores das salas e os arranjos dos tectos. Soluções estruturais surpreendentes.Os arranjos exteriores são assinados por João Gomes da Silva, homem da paisagem que soube colocar as ervinhas alinhadas em harmonia com o espaço envolvente. Percebe-se que os tempos memoráveis dos bons tempos dos claustros não voltarão. Tudo tem um tempo. Tudo tem preceito. Mas a vida que se adivinha promete o melhor, percebendo a fantástica equipa de trabalho que ali mora. Não tirem os olhos deste lugar.

O entusiasmo que esta intervenção me causou leva-me a perguntar: como é que um executivo camarário que aprova um projecto como este e como o da extraordinária recuperação do antigo quartel do 11, da autoria da arquitecta Teresa Nunes da Ponte, aprova outras frustes "recuperações" que escurecem a cidade? Não sou um observador feliz desses lugares de envergonhamento, onde impera um delirante mau-gosto visual inebriado de uma evidente indocumentação exclusora dos princípios fundadores da arquitectura e do design. Aplicações hediondas eivadas da mais profunda ignorância. Profundo desconhecimento da eficácia da cor. Profundo desconhecimento de design de equipamento e de produto. Os edifícios perpetrados por esta atitude obtusa ficam confinados e tristes, remetidos para uma existência que não merecem, numa terra onde não abundam grandes exemplos da excelência arquitectónica. A cidade fica confinada e triste, arrastada por esta onda de incompetência visual e gosto duvidoso. Pratica-se aqui o anti-design e o desprezo pela arquitectura. A desnecessária "recuperação" da Casa da Cultura, onde participo como colaborador, é um desastre. A cor recentemente usada no exterior é triste e reduziu o edifício a um vulgar casinhoto. A tipografia que sinaliza e designa o lugar, aplicada na referida parede, marimba-se na imagem que o meu ateliê concebeu e que é utilizada todos os dias na divulgação da excelente programação da Casa. É triste, isto. E isto dito, renovo a pergunta: como é que isto acontece? Será que agora, com a reabertura do Museu da cidade ao público, a preocupação com o rigor estético vai regressar ao terreno? Acredito que sim. Acredito que o actual executivo camarário vai terminar o mandato com a cara limpa, perdão, com a cidade limpa e alegre, como merece uma cidade solar como Setúbal. Acredito mesmo. Esta penúria visual não pode durar sempre. Isto vai ser corrigido. O que está mal é sempre corrigido. Não tenho dúvidas disso.

Parabéns pois a João Luís Carrilho da Graça e à sua equipa. Parabéns ao executivo municipal, pela decisão política e pela preclara decisão que aprovou tão competente projecto arquitectónico. Quanto ao resto, vejam lá isso. Nem todos temos que nos render a gostos pessoais de duvidosa expressão e à esdrúxula ignorância dos inenarráveis decoradores convocados.

Muito obrigado. Muito obrigado mesmo.

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