segunda-feira, 11 de maio de 2020

Ólhó Repórter
















Estes escritos no confinamento que aqui vou partilhando, vão ao fundo de tempos tão distantes como saudosos. Num baú de plástico encontrado na cave — os baús de madeira dos nossos avós já só existem nas histórias — encontrei jornais que não consigo colocar no recipiente do papel a reciclar. Não sou saudosista. Nada me detém no passado. Tudo me alimenta a vontade de olhar para o futuro, mas há pérolas que brilham como lanterna em caverna escura. Entre primeiros números do JL, exemplares do Se7e e do Diário de Lisboa em que sou mencionado por boas razões, e Blitz de várias temporadas, encontrei alguns exemplares do Repórter de Setúbal. 

O Repórter foi um jornal, semanário, que nasceu da vontade e esforço de uma pernada de amigos. Muitos andam por aí — não somos assim tão velhos —, mas já há desaparecidos em combate. O combate pela vida, que nos é agora tão caro.O exemplar que trago à colação — saiu em 29 de dezembro de 1984 — traz dentro uma preciosa entrevista a José Afonso, conduzida pelo Mariano Gonçalves — então director do jornal em exercício. Alternava com Tapum Ferreira. Carlos Catalão era o director adjunto —, e por este vosso amigo, que aqui fazia a sua estreia na carreira de jornalista, encerrada logo após a saída deste número. Só acompanhei o entrevistador principal porque conhecia José Afonso, e era tido como conhecedor do seu trabalho. Nesta edição já eu falava da obra gráfica na obra de José Afonso. E já pensava o que penso hoje, mas hoje com a vantagem de já ter produzido uma exposição com o trabalho visual dos treze LPs editados por Zeca, com os grafismos dos designers José Santa-Bárbara, Alberto Lopes, José Brandão e João de Azevedo, os feitores das imagens das capas e arranjos gráficos.

A entrevista recolheu opiniões de José Afonso sobre a sua passagem pela cidade. A linhas tantas refere a dificuldade que tiveram os fundadores do Círculo Cultural. "Não foi fácil pormos o Círculo Cultural de pé," diz. O círculo funcionou nas instalações onde hoje está a Casa Da Cultura | SetúbalA direita fascista tentou, de maneira caluniosa e vil, boicotar a constituição de uma coutada de "esquerdistas, drogados, passadores de droga e de outras práticas imorais". O costume para a época. Costume que não mudou assim tanto. É ver o deputado europeu Nuno Melo acusar o Ministério da Educação por passar nas aulas da nova telescola um programa do historiador Rui Tavares.

O Repórter teve projecto gráfico meu e era paginado por mim, em casa, na véspera de ir para a máquina. Isto quando os computadores nem miragem eram. Tudo montado em acetatos transparentes, em sentido invertido, com precisão literalmente milimétrica.
Este jornal teve a ousadia de misturar Setúbal com outros saberes. Representou, naquele tempo, a ideia que defendo para uma comunicação social regional, sim, mas com os olhos postos no mundo. Reconheço que é difícil manter um projecto assim. Este acabou por não se aguentar. Foi pena. Agora leio este exemplar como se tivesse acabado de sair. E sinto-me bem, com saudades do futuro.



As fotografias são do Armando Reis. O guedelhudo barbudo que está ali sentado ao lado do entrevistado sou eu. Foi isto.
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