terça-feira, 5 de maio de 2020

Meu caro amigo





As atitudes do iletrado irresponsável que se senta actualmente na cadeira da presidência, no Palácio do Planalto, trouxeram-me à memória um episódio que revela bem o desprezo que esta gente adepta de ditaduras e da anulação do conhecimento nutre pelas pessoas de cultura e pela cultura em si. E consequentemente pela vida das pessoas, como se viu no tempo dos militares e se tem visto agora, com esta tropa fandanga no poder.

Nos primeiros anos da década de 1980, o Brasil, então em ditadura, experimentou um processo de decadência política e económica que só terminou com o fim do regime dos militares, em 1984.
Em 1982, Sérgio Godinho viajou até lá. Já tinha sido detido uma vez naquele país, em 1971. Permaneceu na prisão durante dois meses. Desta vez o domicílio prisional durou pouco mais de um mês. Motivo das detenções: crime de divulgação cultural. Teatro e música não são perfume para ditadores.
Em Portugal a notícia foi recebida em choque. José Afonso residia em Vila Nogueira de Azeitão. No dia 4 de Dezembro desse ano, atirou a doença para trás das costas — na altura já a avançar a passos largos — e iniciou uma estruturada campanha de solidariedade com Sérgio Godinho. Assumi a tarefa de tratar da reprodução e distribuição de um documento/abaixo-assinado, "sugerindo" a libertação do seu colega, a enviar ao Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal. O dito documento acabou por não chegar ao Palácio das Necessidades, por razões óbvias: Sérgio foi libertado uns dias depois. A sua libertação resultou de uma gigantesca acção de solidariedade encetada por gente da cultura e das esquerdas de Portugal, do Brasil e de muitas outras geografias. José Afonso estava sempre na primeira fila destas manifestações solidárias.
Sérgio Godinho já esteve três vezes em sessões Muito cá de casa, na Casa Da Cultura | Setúbal. Em 17 de Maio do ano passado, apresentámos Estocolmo, o seu mais recente livro. Antes do encontro na sala José Afonso, estivemos à conversa. Passou-se então o seguinte: como descobri os originais com o texto de José Afonso e as assinaturas dos portugueses solidários, resolvi oferecer aquele documento único ao ex-prisioneiro da ditadura militar brasileira. Fiquei com uma cópia da folha A4 assinada por José Afonso. Está aqui. Assim como algumas imagens que documentam uma amizade.
As ditaduras reprimem, prendem e matam. Em tempo de elogio destes tempos, é tempo de denunciá-los.
Fascismo nunca mais, mesmo.

facebook