quarta-feira, 6 de maio de 2020

Levante-se o réu


Passaram hoje setenta anos sobre um episódio que mudou os julgamentos políticos em Portugal. Acusado pelo regime de traição, Álvaro Cunhal, em tribunal, dá a volta ao texto e acusa os fascistas que o acusavam. Frase histórica: "Que se sentem os fascistas no banco dos réus".

A partir daí os seus camaradas de partido passaram a assumir a condição de militantes, usando o tribunal como palco para a denúncia das atrocidades do regime. Hoje é difícil entender as atitudes de homens e mulheres que lutaram contra o regime imposto por Salazar e pelos grandes empresários de então. O regime protegia a corrupção instalada. As populações sofriam na pele com a imposição de um sistema repressivo que perseguia, prendia, torturava e matava. A mais reprovável miséria minava a vida do povo. A oposição combatia na clandestinidade. Os militantes inscritos na prioridade de combater o regime eram cidadãos ilegais. A legalidade era o fascismo: a delação e o ódio eram legais.
Famílias de militantes comunistas foram separadas. Filhos enviados para o exterior para sua própria protecção. Cunhal esteve preso anos a fio. Foi torturado. Na prisão desenhou, escreveu, traduziu. Foi um homem com capacidades invulgares. O seu trabalho artístico e literário está publicado.
Hoje, em democracia, e para as gerações que nasceram em liberdade política e cultural, tudo isto é inimaginável. Até parece que foi excessivo e inútil. Mas não foi. Foram estas atitudes que nos deram a possibilidade de ter hoje um regime democrático. E depois de Abril foram estes democratas que construíram a democracia. Sim, a democracia não foi obra apenas dos partidos que formaram governos. os projectos de lei foram elaborados e depois votados, primeiro na Assembleia Constituinte e depois na Assembleia da República, pelos deputados que construíram a democracia em Portugal. Álvaro Cunhal teve desempenho fundamental. Sempre foi um democrata que aceitou as regras da situação que ajudou a construir.
Bem sabemos que ainda hoje existe quem esteja sempre com a pistola acusatória pronta a disparar. Quem defende a democracia que releva o bem estar das pessoas, a cultura, o humanismo, a solidariedade, é prontamente enviado para a Coreia do homenzinho das experiências bélicas, para a Venezuela, para Cuba e mais não sei para onde. Há quem não veja, ou não queira ver, que nem todos pensamos da mesma maneira porque somos todos diferentes. Imaginar um regime como o da Coreia do Norte implantado aqui, ou achar que é isso que a esquerda quer, é mais ou menos como não ter medo de ser ridículo.
Alinho estas palavras, neste fim de dia em que passam setenta anos sobre esta data histórica, para relembrar Álvaro Cunhal. Ele merece ser relembrado.

Fotografia de Carlos Lopes
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