sábado, 18 de abril de 2020

Receituário

Mais uma apreciação de PARÍCUTIN, de Gonçalo Duarte. Desta vez na edição deste sábado do Expresso, e pelo teclado de Sara Figueiredo Costa. O texto está reproduzido aqui de carreirinha:

Parícutin é nome de vila mexicana e é com a erupção inesperada de um vulcão na sua região agrícola que abre o livro de estreia de Gonçalo Duarte, depois de várias histórias curtas publicadas em volumes coletivos. Essa sequência inicial de oito pranchas coloca em cena Dionísio Pulido, agricultor surpreendido nos milheirais por um forte cheio a enxofre, depois pelo surgimento de fumo, em seguida pela constatação de que há um vulcão a erguer-se das entranhas da terra. A história é verídica, mas não é o registo de factos que ocupa a narrativa deste livro. Desaparece Pulido e entra em cena uma outra figura, aparentemente dominada por um eco de si mesma e entretanto ocupada com a construção de uma casa. A relação não é unívoca e esta mudança de cenário e personagens começa por parecer um corte profundo na solidez da narrativa, até se perceber que a linha que atravessa este livro não é a da sequência de acontecimentos, mas antes a desregrada sucessão de pensamentos livres que marca parte considerável da nossa atividade cerebral. Gonçalo Duarte cria uma acutilante corrente de consciência visual e narrativa que coloca no movimento de deambulação do pensamento o eixo dos acontecimentos, por vezes aproximando-se de um registo onírico, outras vezes de um delicado delírio em vigília com visitas abruptas ao inconsciente. Há outras personagens em cena, mas como Dionísio Pulido, não é tanto no cenário de uma história que a sua presença se regista, e sim no inferno pessoal que se vai desdobrando no pensamento cuja atividade se regista. Os diferentes estilos visuais, a alternância entre diálogo e solilóquio, os contrastes na composição das pranchas e na relação entre texto e imagem acentuam esse tom de divagação, mas a polifonia não deixa perder o fio que se estende desde os fumos do vulcão mexicano até às erupções emocionais de cada dia. Como uma descida aos infernos, sem outra viagem que não a das sinapses. / SARA FIGUEIREDO COSTA
PARÍCUTIN
Gonçalo Duarte
Chili Com Carne, 2020, 80 págs., €10
Banda desenhada