DE QUE FALAMOS QUANDO FALAMOS DE CULTURA?
Dia 5 de Outubro, enquanto se comemora a República, abre portas a Casa da Cultura de Setúbal. Novos equipamentos alojam-se no palacete que em tempos foi testemunha das iniciativas do Círculo Cultural. Projecto arquitectónico soberbo, onde se respeita a história e se aplica a contemporaneidade, da autoria de Gonçalo Silva. Exemplo do que deve ser feito: recuperação urbana de qualidade.
Dia 5 de Outubro, enquanto se comemora a República, abre portas a Casa da Cultura de Setúbal. Novos equipamentos alojam-se no palacete que em tempos foi testemunha das iniciativas do Círculo Cultural. Projecto arquitectónico soberbo, onde se respeita a história e se aplica a contemporaneidade, da autoria de Gonçalo Silva. Exemplo do que deve ser feito: recuperação urbana de qualidade.
O Círculo foi, nos tempos da ditadura, local de encontro entre gente que combateu essa violência contra a liberdade e a cidadania. Aconteceram, ainda nas instalações da Avenida 5 de Outubro, palestras, cursos de fotografia e artes plásticas, encontros de resistentes anti-fascistas. Depois de Abril de 1974 deu-se a mudança para o edifício onde agora se instala a Casa da Cultura. Constituir naquele local um projecto cultural com esta dimensão, é simultaneamente homenagem e vontade de ir em frente. Fui dinamizador do Círculo já depois de Abril. O período antes da revolução não me permitiu grandes andanças associativas por motivos óbvios: era um puto. Conheci, portanto, Dimas Pereira, José Afonso, Alberto Pereira e todos os outros animadores da casa já em democracia. Comecei a labuta "circular" ainda a democracia gatinhava. A necessidade de afirmação pessoal não morava ali. Trabalhávamos em grupo pelo desbravar ansioso do conhecimento que antes nos estava vedado. O grupo de teatro A Comuna colaborou connosco em acções de dinamização cultural com a peça O Fogo. Ainda guardo memória dos textos citados nos palcos montados nas mais incríveis circunstâncias em fábricas, colectividades, cooperativas agrícolas. Também produzimos as nossas próprias peças: As Duas Caras do Patrão, texto de teatro campesino, e um apanhado de textos de Gil Vicente, foram reunidos e encenados e levados às tábuas de vários palcos da região. Manuel Murta ensaiava a coisa. As farpelas foram experimentadas em palco pelo Luis Santos, pela Helena Fonseca… bem, não me peçam para me lembrar de todos os nomes. Tudo isto aconteceu até meados dos anos oitenta do século passado.
A partir de certa altura, aquela casa era a minha casa. Andavam por lá, entre outros, o Pina, o Jorge Matos, o Nelson, os manos Caldeira, o Avelino, a Turíbia, o Queroz, o Henrique. Com o Victor, o Avelino e com quem mais aparecia, corremos urbe e arrabaldes em intensa distribuição de panfletos divulgadores de cinema de excepção, projectado no extinto cinema Grande Recreio do Povo, aos sábados de manhã.
Mais tarde fiz contactos e participei na organização de exposições e conversas várias. Destaco a série de encontros a que chamámos Dois Dedos de Conversa. Foram chamados a Setúbal para falar sobre o seu trabalho, autores como Baptista-Bastos, António Lobo Antunes, José Saramago, Virgilio Martinho, Adriano Correia de Oliveira, Vitorino, José Afonso. Rogério Ribeiro, Hipólito Clemente, Manuel da Fonseca.
A intensificação da minha actividade profissional não permitiu que acompanhasse o percurso que se seguiu. O sucesso do capitalismo popular, com os lares inundados de aparelhos de vídeo, de canais televisivos difusores das mais variadas matérias, e o acesso directo ao bem estar social e cultural, ditaram novas regras. Novas actividades foram desenvolvidas. O Circulo resistiu enquanto pode. Depois foi acabando. Fica a glória de tempos que marcaram a cidade tão intensamente. O Circulo sempre foi um lugar de grande modernidade e cosmopolitismo. Um lugar no chão do mundo. Foi um prazer muito grande colaborar com tantos e bons amigos.
Esta é a memória da minha passagem por ali.
A Casa da Cultura reconhece este percurso e prossegue novos caminhos. Já nada é como era. O meu envolvimento na vida da colectividade, levou os actuais responsáveis pela edilidade a solicitarem colaboração na elaboração da imagem gráfica da nova Casa. Desenvolvi o trabalho de design de comunicação. Na apresentação desse trabalho, e para justificar ideias visuais, atrevi-me a sugerir algumas possibilidades de programação. Esse atrevimento transformou-se em desafio. É esse desafio que agora enceto. Logótipo e uma exposição sobre José Afonso são as primeiras aplicações visíveis. Aplico-me com entusiasmo, confiança e alguma emoção, confesso.
Uma Casa da democracia numa cidade que sempre apreciou a liberdade.
Vamos trabalhar.