A Entrevista de João Soares ao Público
Há dois anos e meio, Guterres avançou como um São Bernardo para salvar o partido da criogenização. O resto é sabido: levou pontapés a montante e a jusante e o navio-escola da Casa Pia atracou-se-lhe ao pé. Não se conhece nenhum animal, mesmo com a envergadura de um São Bernardo, que sob uma saraivada de pontapés possa deixar de ter um percurso errático.
A acusação de João Soares em relação ao seu secretário geral - num momento em que o horizonte se mostra pela primeira vez propício a uma peroração são bernardina - não passa de uma redundância e mostra que o seu raciocínio está a passo (- ainda não superou a fase "descritiva"), talvez enterrado na areia movediça onde já floresceram categorias. Pois não é que uma das suas ideias motrizes, «o valor sagrado», é o da ética política? Isto não devia ser implícito, estar interiorizado? Onde é que patinou a participação política de João Soares para, e apesar de 20 anos na ribalta política, não ter conseguido inculcar no meio em que se move esses valores, o seu exemplo?
Um pequeno deslise na entrevista que dá ao Público esclarece-nos quanto ao que lhe falta: nunca tira a devida consequência dos actos. Talvez porque, também nele, os compromissos são mais profundos que a sua capacidade de reforma. Diz sobre os acontecimentos em Matosinhos: «Estou a dizer-lhe o que disse: comigo como secretário geral, e se houver conhecimento antecipado, este tipo de coisas não se passam. Ou, se se passassem por falta de conhecimento antecipado, tinham uma resolução imediata.», «Fazia uma expulsão do partido?», pergunta, cândido, o jornalista. «Não lhe estou a dizer isso...», corrige aflito o candidato. Não passa de um homem atado, como os outros, à matéria do crime.
Mas analisemos a armação lógica da frase. «...se houver conhecimento antecipado...». Ah, inopinado e irresolúvel paradoxo! Igual só aquela conhecida frase: «Antes de começar a falar há algo que gostaria de dizer...». À frente, João Soares quer emendar, com a mesma douta absurdez e a boa-fé com que o peru aceita o segundo gole de aguardente: «...ou se se passassem por falta de conhecimento antecipado?». João Soares, sem dar-se conta, expõe as redundâncias da sua cartilagem mental e mostra que é feito da mesmíssima massa dos políticos de carreira, a quem a realidade irrita por causa da sua mania de deslocar-se sem um aviso à precedência.
O que é lamentável é que lida a entrevista se verifica que dentro da criatura há um ermo longitudinal onde o vento varre, a desfastio, e que aquilo que Santana é por fora - três outdoors amassados sob a ondulação oleosa do penteado (ao menos Santana não reinvidica qualidades intrínsecas) - é o novel candidato à coroa do PS por dentro: propaganda e a assustadora desaqueação da guelra na banca da varina.
António Cabrita