domingo, 20 de junho de 2004

Mais bandeirinhas

e outras tácticas futuras

Só o facto da memória dos povos ser tracejante explica o entusiasmo das bandeirinhas. Lembro três ocasiões em que as bandeirinhas andaram lúbricas à solta, num frenesim idêntico. Durante o desfile lisboeta que empurrou o escol do país para as naus que rumariam a Alcácer Quibir, após o vexatório Ultimato inglês, e na abertura da Exposição Universal de Lisboa, em 1940. Um momento em que o país foi apanhado de calças na mão e duas manifestações que consagravam um poder de insânia larvar. É obra!
Fidelino de Figueiredo, em nota apensa à sua História de Portugal, transcreve um documento de época que, com detalhes, retrata a exaltação da fidalguia que havia penhorado cão, irmã solteira, cortinados, brasões, as próprias "letras" das hipotecas, a fim de participar no luxo do cortejo que se revelaria final. Foi um espectáculo que, pela sua dimensão de potlach (- a uma escala de irracionalidade que hoje volta a distinguir-nos com dois submarinos), causa ou risos ou náuseas, arrumando qualquer nacionalismo no expositor dos congelados.
Julgava-se que pelo menos disso estávamos isentos mas o Euro 2004 trouxe-nos uma regressão infinita. Hoje, os meus compatriotas, buzinam como carneiros melancólicos a quem excitou o tilt dos flippers, e, apesar de gostar de futebol, suspeito que o Euro representa o «turning point» que empurra o país de um longo eclipse para a devassa final. É a altura de emigrar.
Não me lembro de ter visto bandeirinhas quando o Saramago ganhou o Nobel ou o António Damásio o êxito internacional. João Magueijo continua a viver em Londres, por falta de condições para fazer investigação científica em Portugal, e não há uma única escola secundária no país que tenha um piano. Os espanhóis, apesar de três bolas na trave, perderam por mérito de um golo um tanto fanado do Nuno Gomes mas o que é facto é que hoje os trunfos que a economia portuguesa joga são espanhóis e que até a zona do Alqueva, o nosso último grande empreendimento, é maioritariamente deles. Deve ser mais catarse que por convencimento que buzinam os meus compatriotas, cada bandeira a alucinar um gambosino.
O "génio do pintelho", que sabia o que a casa gasta, ganhou o Leão em Veneza, e espalhou ele mesmo umas bandeirinhas nos fotogramas seguintes, à míngua de quem celebrasse com ele. Mas no fim, lúcido, deu-se por sodomizado por um mangalho astronómico que não correspondia à média, baixa, do país.
Em ritmo tracejante, janela sim janela não, as bandeirinhas cobrem o país como uma gelatina à cata de osso, ou um perdigueiro de lambarice claudicante. É compreensível que tenha sido um brasileiro o apóstolo. Em S. Paulo, durante o Campeonato do Mundo da Coreia, encontrei num semáforo um faquir que, entre sinais, engolia vidro e cuspia fogo sobre a bandeirinha brasileira. Explica-me o amigo que me transportava: «este tipo tem de ser faquir porque tem a desgraça de ser honesto e não conseguir roubar!». Há dois anos, ainda não imaginava que em Portugal, a tão breve trecho, seria útil abrir uma escola de faquires... e que os desequilíbrios económicos e sociais se instalariam inexoravelmente, sem um ai, um sinal de revolta, um bardamerda, afeiçoados à fatalidade que o fado, fanhosamente, entre fífias, afaga. Estranha coincidência a do fado estar na moda no momento em que o país voluntariamente se amesquinha! Coincidências que ilustram "uma estranha forma de vida".
Entretanto, o Alberto Pimenta lançou um livro notável (editada pela Teorema) e é acolhido pelo silêncio. Os jornais, as rádios, as televisões, não lhe dedicam um grama de atenção. Deve ser o custo de não escrever letras para o João Braga! E em Setúbal, onde uma excelente encenação de Harold Pinter não tem o público que merece, três mulheres respondem pelo crime de aborto porque o povinho, no fundo, no fundo, suspeita de tudo o que é indiciado, a bem ou a mal. As prioridades estão todas trocadas, e mesmo nas bandeirinhas não se sabe se é o vento que as move ou o tecido que as mexe.
Coragem, portugueses, a "retoma das lancheiras" já palpita ao cheiro das bandeirinhas -  a miséria não usa meios tons e faz-se ao esplêndido! E depois, José, que fazer dos paninhos? Da esfera armilar, tão indutora de pecados? De tantos pauzinhos em alta? Avanço uma hipótese ? queimem-se! Há-de ser a fogueirinha tão famosa como a que consumiu a Biblioteca de Alexandria, pois não vale uma simulação de Rui Costa as Tábuas de Hermes Trimegisto, e uma canelada de Petit «O Piolho Viajante»? Coragem Portugueses, o futebol é a metástase mais prometedora!
E, desconfiado que o expediente das bandeirinhas não será o suficiente para os quartos de final, a generosidade assiste-me e forneço outras tácticas para o jogo.
Primeira, recorrer ao truque que num jardim zoológico se usou para pôr os pandas a copular: durante os jogos, passar em placards gigantes acoplados às balizas jogadas gloriosas dos pretéritos antepassados, Travaços, Eusébio, Futre e Nené. Que Poborsky não se sentirá inibido ao ver, em simultâneo e  em escala gigante, o saudoso Futre a fintar os polvos galegos, ou o Eusébio a desfeitear Pelé? Enquanto aos nossos, proezas tamanhas provocarão espontâneas vibrações de panda.
Segunda: a hipótese holográfica.
Na marginal da Póvoa do Varzim há um talho que se chama "Eça de Queirós". É o que está certo. Só que sobre a carne que alimentava as ideias impenitentes no Eça, esses embriões selvagens, correu o rio de Heraclito, e a memória que validava o nome ? revejo o escritor de monóculo ao balcão, a pedir, "... dê-me oitocentos gramas de acém redondo, ó Ramires!" é hoje um fantasma no cristalino. Mas podemos elevar esta sugestão a uma ilusão holográfica, a semear pelos relvados do futebol. Fugacíssimas "aparições" a deflagrar pelo campo, num ritmo intermitente que não permita o ónus da prova, e que turvem olhos e canetas dos adversários. Flashes de Eça de Queirós a bater-se com uns túbaros, de Bulhão Pato a chupar as amêijoas, ou de Cardoso Pires a debicar um whisky, a rebentar por entre as pernas de Zidane, no momento em que o atleta se prepara para bater o penalty. Visões que não duram mais que um décimo de segundo mas que, subliminarmente, abarrotam a perplexidade dos adversários. E à defesa, armados dos seus dons da ubiquidade, Fernando Pessoa e João Pedro Grabato Dias. A vitória tem de começar por ser retiniana, antes de se tornar muscular.
E até lá compatriotas, que continue o desproporcionado concerto das buzinas, que fiquem áfonos de gritar «Portugal, Portugal» - eu retiro-me a rever «Um dia Inesquecível» de Ettore Scola, uma fita tremenda onde dois seres frágeis e sós partilham o segredo e os receios da sua diferença, enquanto à volta uma unanimidade irracional corrompe os corações e os lugares com os agoureiros da morte. E como afino os íntimos desacordos e o país é este patético desperdício de energias, pobre matéria dissipada, aí vai bombarda:

O FECHO DO BOMBARDIER

1
A língua do cão desagua
na fonte santa. Num incessante
regateio, os sinos ao longe
forçam ribeiras, gorjeios.

Comes areias, no recosto
dominical, atenta na tv
à matança das focas. De paulada
em paulada se dá folga

à estatística. Em golfos
rubros. Num frémito
apertas a cabeça do terrier

para que não veja a morte
catódica, e na Ponta do Ouro
titilem as vogais da carne.

2
Pára. O primeiro-ministro debita.
Tem o raciocínio entaramelado
pela lembrança de ter sido corvo,
e capacito-me da crueldade do bem.

De miúda, o ensejo de conhecer os comboios
por dentro, de subsistir no que se evita
quando a locomotiva talha
as trevas na charneca e a esperança

infecta um olho à criança atada
ao cepo da pobreza, ao aviltamento
da mãe que se vende aos espanhóis
para comprar a fiado. Esta gente,

pelas mil abscissas do trovão,
quer impôr imposto ao grito.

3
Tinha atirado com a toalha ao chão,
a ulcerada chapa de ferro
que jazia junto ao poço. E
aos seus desapontados buracos

acudia o verde, tufos de ervas
feias e raquitícas. E assim intuí:
"os comboios não são eternos."
O que lhes dá um hálito humano,

a fanada loquacidade do galo
capão.  Poucos anos depois
li no jornal que havia vagas

no Bombardier e pus a mãe
no asilo. Há escolha entre
o que amamos e quem amamos?

4
Um noivo na aldeia, ria a bandeiras
despregadas c "o colega de trabalho.
Foi o que me tramou" os santos,
a pílula. Dez anos a montar janelas

em chapas que serão velozes.
Também eu fui um bebé
recoberto d' ouro, estúpida papoila
que as galochas de um cauteleiro

pisaram. Será invisível o ópio
que nos aveluda as veias? O sinistro
perseguia-me, comprei um cão.

Por cicatrizes penso, assopradas
no zinco, vidro e ar condicionado.
O maquinista devia ser ministro.

5
Mensalmente, envernizam-me a cólera
com o subsídio do desemprego.
Cheira a mijo prensado, a neura, há
tanto que não mudo a roupa da cama.

Minguo, dois maços por dia p' ra
três salchichas e um ovo, é fado
com desrima no pulmão, não ganha
pr' a vidinha nem se compromete.

Revejo imagens de minha mãe
a entrar em pranto nos penhores,
ou a jogar ao prego c' os espanhóis.

Que emoção quando feríamos
um dedo e o calor do sangue
devolvia uma vida pujante.

6
Dezoito meses d' ecos à procura
de autor. De uma voz coriácea
e fidedigna ao espelho;
de um amo... mesmo desprovido

de beleza, e de quem se comente
os filhos ou como esquece
o panamá no café. Dezoito
meses pelados por um governo implume.

Desabrochará, o primeiro dia após
o subsídio, numa queimadura de 1º
grau que já se move, sorridente.

Peludo, como as partes, será o fogo
e fora de si, extasiados, os orifícios
do meu corpo planarão sem brevet.

7
A vantagem dum cão é que não tem
fachada, promissórias românticas.
Nem a morte, cravado o gume
até ao cabo, lhe revela dissimetrias.

Pude então fazê-lo sem a custódia
duma lágrima. A pele, o desosso.
Comovi-me por afinal não ter
mais carne que um coelho - moída

só dava para almôndegas. Parecia
que voltava à cantina do Bombardier.
Convidei dois antigos colegas.

E vinho à discrição. Adoraram.
Foi uma risada quando sugeri
que comíamos os tomates do ministro.

António Cabrita