domingo, 14 de março de 2004

11-M

A televisão avariou há um mês e o homem que devia nunca chegou a aparecer. As imagens de Atocha não entraram lá em casa. (Que ao menos o horror, que me dói no estômago, fique longe da sala de jantar). Manolo Montálban, se fosses vivo, talvez amanhã no "El Pais" escrevesses as palavras que eu precisava de ler. Hoje, não me sais da cabeça (precisava de ti amanhã, mas no teu lugar vão estar os períodos infelizmente monocórdicos do Eduardo Mendoza).

Ao revolver os mortos pelo terror em Madrid, e os estilhaços do 11-M, penso em ti e na falta que me fazes, e em Fernando Assis Pacheco, que se fosse vivo estaria hoje em Madrid, exercendo a sua "profissão dominante". A nossa vida prossegue: ontem, na rua Tomás Ribeiro e em Madrid, um rapaz e uma rapariga muito feios beijaram-se desalmadamente, abrindo janelas na barragem do terror, como a mulher que estendia roupa quando começaram os ataques americanos a Bagdad.

Sim, eu sei que serão cada vez mais os que irão repetir que só ao lado de George Bush se pode combater o terrorismo e que não pode haver "hesitações" nem "mas". Aturdidos estamos.

Gostava de estar hoje em Madrid à sua beira, Assis Pacheco, a vê-lo respirar, a assistir à sua respiração. Foi consigo, quando pela primeira vez lá estive, que aprendi a amá-la, à Madrid das "calles" e "plazas", das comidas, das livrarias, dos livros de bolso vendidos no chão, da maravilhosa língua que você adorava, dos cafés, dos jazz bar. A "profissão dominante" juntou-nos lá uma vez - e, em vida, nunca lhe agradeci isso como deve ser. Nos textos de Fernando Assis Pacheco vive o seu amor por toda a Espanha - Assis foi um poeta maior, que por demasiado tempo abdicava de publicar, distribuindo poemas fotocopiados por alguns que entendia privilegiar, chegando ao jornal às oito da manhã e apanhando o autocarro para Campo de Ourique ao fim da tarde, escrevendo na sua máquina, quando já todos arranhávamos o "microsoft word", "cosas preciosas" que ficaram nos arquivos de "O Jornal". "(...) Pode morrer tudo aos poucos/na memória mas nunca Almería/ a praia de basalto e ali ao pé/uma certa fonda de esquina/onde tu e eu emborcámos/caray que óptimo Albariño/com peixe na grelha e do manchego/no pão alvo em grandes fatias/nem aqueles noites de Málaga/em que torcíamos a camisa/ e tu aproveitavas para contar/ metade da tua longa vida (Estradas do Sul, Verão de 58, A Musa Irregular). Sobre Atocha, o melhor texto seria o seu, escrito talvez em português e espanhol, línguas irmanadas.

Ana Sá Lopes, Público.