Tive a sorte de conhecer pessoas que influenciaram pessoas, mudaram rumos, fizeram crescer atitudes, criaram ambientes diferentes. Melhores. De todas essas pessoas, há uma que se destaca. Era diferente de toda a gente. Parecia que tinha uma aura que o distinguia. Mas não era santo, era gente: "temos que ser gente", dizia ele. "Não podemos ser homenzinhos e mulherzinhas".
Aprendi com ele a interpretar a realidade de uma maneira diferente. Esqueci os conselhos escolares do regime fascista. Percebi que "não demos novos mundos ao mundo", como defendiam os fascistas daquele tempo e defendem os neofascistas. Massacrámos, impusemos uma fé e instituímos o ódio racista. Nós não, mas sim os vampiros que comiam tudo. Era o tempo do ditador assassino Salazar e seus apaniguados criminosos.
Tive muitas conversas com José Afonso. É dele que falo, como já perceberam. Esses encontros foram privilégio meu. Algumas das conversas que o Zeca (era assim que era tratado entre nós), tinha nos cafés e em muitos encontros iam depois parar às suas canções. Diz que é assim que fazem os autores literários das canções que nos fazem pensar. A mixórdia romântica fica para os idiotas que gargarejam frases sexistas ridículas. José Afonso mudou a Música em Portugal. E foi referência para muita gente, na música, no teatro, na literatura, na atitude.
Enfim, tudo isto vem aqui à baila porque José Afonso faria neste dia 2 de agosto 96 anos. Celebramos a vida de alguém que nos deu muito. Devo muito a José Afonso. Continuo a recordá-lo diariamente. A contemporaneidade recupera-o todos os dias. Ser humano único que não é possível misturar com as acima mencionadas mixórdias. O discurso racista, misógino, machista e troglodita estão a atingir proporções institucionais. Lembro-me de uma frase de uma canção:
DOIS DEDOS DE CONVERSA COM... | Era este o título destas sessões. Foi no início dos anos oitenta do século passado que se deram. Polvilho estas palavras com imagens do encontro que promovi com José Afonso no Círculo Cultural de Setúbal, local onde hoje existe a Casa da Cultura, e na sala onde aconteciam estes encontros, aqui ainda com as telas que entretanto desapareceram das paredes antes da recuperação pelo município. Onde estarão? Também se vêem os livreiros que guardavam obras de incalculável valor. Exemplo: existiam ali encadernados todos os exemplares da "Ilustração Portuguesa", e também muitos clássicos da Literatura Portuguesa. As fotografias são do Jorge Santos, espectador destas sessões que nos deixou recentemente. Por lá passaram, para além do Zeca, Baptista-Bastos, António Lobo Antunes, José Saramago, Virgílio Martinho, Manuel da Fonseca, Rogério Ribeiro. Hipólito Clemente, Vitorino, Adriano Correia de Oliveira, Carlos Pinhão, Saldanha da Gama, enfim, muita gente que na altura punha as cartas na mesa. Estes encontros foram valorosos fornecedores de conhecimento. Notáveis palestras. Como comecei por dizer: tive a sorte de conhecer pessoas que influenciaram pessoas. Mudaram rumos e criaram ambientes diferentes. Melhores. E como diria o também meu amigo Jorge Silva Melo: "Ainda não acabámos".