domingo, 23 de março de 2025

Maior que o pensamento

Conheci Herberto Helder no princípio dos anos oitenta do século em que ele e eu nascemos. Gente antiga que pertence a outro século. Eu organizava uns encontros literários e artísticos no Círculo Cultural de Setúbal a que chamei "Dois dedos de conversa com... ". Nestes encontros participaram muitos dos protagonistas culturais da época. Mais ou menos como hoje acontece com o "Muito cá de casa", na Casa da Cultura, situada no local onde funcionava o Círculo e se davam as referidas conversas. 

Eu ía para Lisboa todos os dias para aprender qualquer coisa. Circulava entre o AR.CO e a SNBA, e no fim das aulas encontrava-me com poetas, romancistas, artistas e jornalistas que paravam no Expresso, um bar que existia ao lado da livraria/galeria Libris. A livraria/galeria era propriedade do meu amigo Aníbal Telo, editor da Forja. O Telo apresentou-me a um mar de gente que valeu a pena conhecer. A minha primeira exposição de trabalhos visuais foi neste lugar de encontro e fruição intelectual. Baptista-Bastos, Manuel da Fonseca, Adriano Correia de Oliveira, Vitorino, Virgílio Martinho, José Carlos González, Vitor Tavares Manaças, Luiz Pacheco, Aldina Costa, Aníbal Fernandes, Hipólito Clemente (que dirigia a livraria Opinião, ali muito perto), Herberto Helder, e muitos outros e outras que ao fim da tarde não dispensavam o trajecto entre o Expresso, a Libris, o Estibordo e o pequeno restaurante situado mesmo no princípio das escadinhas do Duque. O Adriano era mais Trindade (cervejaria). Um dia encontrei-me por ali com José Afonso e lá fomos todos petiscar à Trindade. Lembro-me do jantar todo. De tudo isto resta só mesmo a Trindade e o tal restaurantezinho das escadinhas do Duque de que não me lembro se tem nome. Os espaços são outra coisa e as pessoas já não estão cá. Só o Vitorino e o Anibal Fernandes continuam vivos e activos. E eu, já agora, que estou agora a contar estas coisas.

Herberto Helder morreu no dia 23 de março de 2015. Foi há precisamente 10 anos. Recordo-o no dia em que o livro tem dia mundial. Isto anda tudo ligado, lá escreveu Eduardo Guerra Carneiro. Mas agora vou contar a minha história pessoal com o poeta de "O amor em visita". A primeira vez que falei com Herberto Helder foi assim desta singela maneira: entrei na Libris e perguntei ao livreiro — lamento não me lembrar do nome deste senhor tão simpático e tão competente — onde era a galeria Leo. Herberto Helder, ali presente, ao ouvir-me, levanta-se do sofá onde se instalava, põe-me o braço por cima do ombro e diz-me rigorosamente estas palavras: "É para a exposição do José Escada, não é?". É, respondi. "Venha comigo". E lá fomos, eu e o poeta caminhando pelo Largo Trindade Coelho até à entrada da Travessa da Queimada, onde se situava a galeria. "É ali ao fundo, no lado direito. Depois passe por aqui para me dizer o que achou". Senti aquele desafio como uma grande responsabilidade. Eu, curiosa criatura, mas iniciante nestes convívios, saberia lá o que dizer sobre o trabalho de um artista que tanto admirava a outro que considerava, e considero, um génio do nosso tempo? Cheguei à galeria absorto num turbilhão de sentimentos: uma pilha de nervos entrecortada entre a euforia e o regalo. A exposição de José Escada causou-me uma inquietação do caraças. Um espanto visual. Um delírio de informação estética. O proprietário/galerista era uma figura incrível. Uma produção visual. Parecia personagem de Hergé. Sim, tinha um certo ar de Tintin, e transbordava conhecimento e simpatia. Estive na pequena galeria mais de uma hora. Ainda me lembro de todos os motivos de conversa. Ao sair da galeria lembrei-me da "ordem" de Herberto e desloquei-me ligeiro para a livraria. O poeta já não estava lá. Nem na livraria, nem no Expresso, nem no Estibordo, nem nas escadinhas. Já tinha ido para o Cais do Sodré, para apanhar o comboio para a chamada "linha". Morava por lá, esclareceu-me o simpático livreiro. A conversa sobre a pintura de José Escada ficou para outro dia. Essa e muitas outras conversas se deram por estes lugares de encontro, mas também na livraria da Assírio e Alvim, na rua Passos Manuel, onde eu ía frequentemente encontrar-me com a Luísa (Cruz) e o Homero (Cardoso). Herberto Helder nunca falava de poesia. Nem da sua nem da dos outros. Irritava-se mesmo a sério quando lhe pediam opinião. Falei com Herberto de cinema, de artes visuais, de política e de comportamentos. Soube-me a pouco, mas foi tão bom...

Considero Herberto Helder um grande senhor do nosso tempo, não apenas como escritor, poeta, pensador, mas também como praticante de atitudes maiores. Confesso que neste dia em que se assinala o seu fim, sinto saudades desses encontros. Nestes dias sinto a sorte que tenho tido em conhecer tanta gente que deu tanto às nossas vidas. Se fosse religioso agradecia a um qualquer deus generoso e bom. Como não o sou, agradeço à vida e a toda a gente que comigo se tem cruzado. Há privilégios que se agradecem.

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