sábado, 1 de junho de 2024

O ESTALEIRO





Roberto Santandreu

Exposição de fotografia. Casa da Cultura, Setúbal

Junho/Julho/Agosto. 2024


INTRODUÇÃO | As viagens sempre nos trazem surpresas. Em 2011, visitei Macau, território que esteve sob administração portuguesa, e que foi porta do Ocidente na China até meados do século XIX.

Na ilha de Coloane, em Lai Chi Vun, encontrei uma série de estaleiros abandonados com estruturas de madeira a que associei imediatamente os caracteres da escrita chinesa. Voltei no dia seguinte com a câmara. Havia um ambiente de ausência e decadência. Quantos homens e mulheres aí teriam trabalhado? Que sofrimentos escondia aquele ambiente de desolação? Permaneci no local fotografando um dia inteiro, no meio de tábuas afundadas no lodo, e esquivando-me a algumas estruturas metálicas e de madeira suspensas do tecto. Sob umas pranchas deslocadas do solo, divisei um caderno semi-destruído pela erosão do tempo. Abri-o e constatei uma série de folhas preenchidas com caracteres chineses, seguidos de números. Qual não foi o meu espanto ao notar que, na parte inferior das folhas escritas a lápis, havia frases no meu idioma, o castelhano. Todas elas acabavam com um traço oblíquo, seguido de um O maiúsculo.

Regressei a Lisboa. Ao analisar as fotografias realizadas e ao relacioná-las com o descobrimento do caderno, a minha curiosidade redobrou. Decidi então fazê-lo chegar à minha amiga Misuki Osawa, professora de literatura latino-americana comparada, na Universidade de Osaka no Japão. Respondeu-me com brevidade – “o que me enviaste não é mais do que um caderno de contabilidade com caracteres em mandarim. As palavras em castelhano são notáveis e com uma forte conotação existencial. Sucede com frequência que os leitores transcrevem frases do seu agrado em forma de síntese para poderem recordar. Toma nota também que, de forma imperceptível, na parte superior da terceira página aparece um nome: João Carlos da Cunha. Espero que estas informações possam satisfazer as tuas interrogações…”.

Após alguma investigação nos arquivos da emigração portuguesa, soube que João Carlos da Cunha nasceu em Samora Correia em 1904 e deixou Lisboa em 1927. Existem indícios de que teria participado num atentado contra o ditador chileno Carlos Ibáñez del Campo em 1928. João Carlos da Cunha conseguiu escapar, mas o seu companheiro de luta, Manuel Tristão da Silva, não teve a mesma sorte. Quando estava a ser deportado, foi assassinado na cordilheira dos Andes, ao ser-lhe aplicada a lei da fuga pelos agentes da ditadura.
Por algum tempo perdeu-se o rasto do anarquista português J.C. da Cunha, até ser detectada a sua presença em Santa María no Rio de la Plata. As numerosas fichas desgastadas e amarelecidas da Biblioteca Brausen mostram a voracidade de J. C. da Cunha pela leitura. Há notícias de que frequentava com regularidade o bar do Hotel Belgrano nessa cidade e de que também teria laborado como assistente do Gerente General Larsen, nos estaleiros Jeremías Petrus &Cía, em Puerto Astillero, situados a uma hora de navegação de Santa María.
Em 1961, deixou Santa María e estabeleceu-se como contabilista num dos estaleiros navais da vila de Lai Chi Vun, na ilha de Coloane.
As últimas investigações referem a morte de J. C. da Cunha, no seu quarto abarrotado de livros, como o de Dom Quixote. E pouco mais se sabe.
De qualquer modo, gostaria de compartilhar as vivências e sensações que tive a fotografar os estaleiros abandonados de Lai Chi Vun e também poder mostrar, com as fotografias, as frases manuscritas encontradas, que só podem pertencer a um grande autor da literatura contemporânea.
Roberto Santandreu

NOTAS BIOGRÁFICAS | Roberto Santandreu Nascido em Milão, em 1948, de nacionalidade chilena. Desde o início da sua juventude manifestou interesse pelas artes da fotografia. Foi assistente do fotógrafo chileno Tito Vásquez. Em 1973, deixou o seu país, trabalhou em Oslo e em Londres. Em 1975, fixa a sua residência em Lisboa onde cria o seu próprio estúdio de fotografia, especializado em arquitectura, publicidade e edição de livros. Colabora também com numerosos artistas plásticos. Expõe regularmente o seu trabalho de autor.

EXPOSIÇÕES |1996 No âmbito das Jornadas de Maio, Seixal |1997 Salão de Fotografia, Paris Photo, Paris (Colectiva) |2000 Galeria Arte Periférica no CCB, Lisboa |Instituto Camões, Vigo, Espanha |Instituto Cervantes, Lisboa |2001 Fundação D. Luís I, Centro Cultural de Cascais |Galeria Municipal do Montijo |2002 Bienal de Arte do Montijo - Menção Honrosa |ESEAR e ESTESL, Parque das Nações, Lisboa |Centro Cultural de Vila Flor, Trás-os-Montes |2003 Instituto Camões, Vigo, Espanha |Galeria Valbom - Lisboa |2004 Centro Cultural de Bragança |Câmara Municipal de Vinhais |Centro Cultural de Vila Flôr |Instalação - Arquivo Distrital de Bragança |Biblioteca de Carrazeda de Ansiães |Centro Cultural de Freixo de Espada à Cinta |Centro Cultural de Mogadouro |Centro Cultural de Foz Côa |Museu do Ferro, Torre de Moncorvo |2005 Centro de Exposições do Ministério das Finanças, Lisboa |Convento dos Capuchos - Almada |III Feira de Arte Contemporânea do Estoril, (Espaço AESI) |Galeria Valbom, no âmbito da Lisboa Photo |Bienal de Artes do Montijo, (Menção Honrosa) |Centro Cultural de Mirandela |Centro Cultural Mestre José Rodrigues, Alfândega da Fé |2006 Centro Cultural de Macedo de Cavaleiros |Galeria do Palácio, Palácio de Cristal, Porto |Centro Cultural de Miranda do Douro |Centro Cultural de Alenquer |2007 Palácio da Galeria, Tavira |Biblioteca da Universidade Nova de Lisboa, Campus da Caparica |2008 Centro Cultural de Montemor-o-Novo |Centro Cultural de São Lourenço, Almancil (colectiva) |Casa da Cultura, Beja |Galeria Valbom, Lisboa |Casa da Cultura, Aljustrel |Edifício da EBI – Barrancos |2009 Fórum Municipal, Castro Verde |Museu da Baleia, Horta - Açores |Galeria de Exposições da Praça, Almodôvar |Igreja do Castelo, Moura |Livraria Círculo das Letras, Lisboa |2011 Livraria Buchholz, Lisboa |Galeria Arte Periférica, Centro Cultural de Belém, Lisboa |Galeria Valbom, Lisboa |Galeria Municipal de Almada |2012 Casino de Figueira da Foz |Museu de Marinha, Lisboa |Marina de Cascais |Casino de Figueira da Foz |2013 Galeria Municipal dos Escudeiros - Beja |Câmara Municipal da Vidigueira |Galeria Municipal do Montijo |Centro Cultural Niemeyer, Avilés - Espanha |Centro Cultural Gafanha da Nazaré, Ílhavo |Oficina de Cultura - Almada |2014 Galeria Arte Periférica - CCB, Lisboa |Auditório Municipal de Saborosa |Galeria - Atelier Margarida de Araújo, Serpa |2015 Átrio do Edifício Central do Município, Lisboa. |2017 Galiarte (colectiva), Lisboa |Convento dos Capuchos, Almada. |2018 Galiarte, Lisboa. | 2019 Casa da América Latina.
| 2020 Galeria de Arte do Convento do Espírito Santo, Loulé. | 2021 Sociedade Nacional de Belas Artes, Lisboa. | 2021 Galeria Municipal do Montijo, Montijo.

COLEÇÕES | Galeria Municipal de Arte do Montijo; PLMJ, Lisboa; Escola Superior de Tecnologia da Saúde de Lisboa, Parque das Nações, Lisboa; Escola Superior de Enfermagem de Artur Ravara, Parque das Nações, Lisboa; Centro Cultural de Vila Flôr; Biblioteca Municipal de Carrazeda de Ansiães; Câmara Municipal de Vinhais; Câmara Municipal de Freixo de Espada à Cinta; Caixa Geral de Depósitos; Resíduos do Nordeste; Bello & Partners; Câmara Municipal de Vila Real de Santo António; ALGAR, Águas do Algarve; MJO; Palácio da Galeria, Museu Municipal de Tavira; Biblioteca da FCT-UNL; MEIAC- Badajoz, Espanha; SPA, Sociedade Portuguesa de Autores – Lisboa; Museu de Marinha.


ROBERTO SANTANDREU - O INTERROGADOR DO TEMPO
Por Elisa Costa Pinto

No ano 2000, Roberto Santandreu apresentou, na Galeria Arte Periférica, no Centro Cultural de Belém, a exposição “A Pedra e o Homem”, iniciando, com fotografias de fortíssimo impacto estético, um percurso singular, marcado pela diversidade temática e formal e, paradoxalmente, por uma unidade e coerência admiráveis. É tentador recordar essa exposição como um mapa programático das grandes linhas que enformariam todo o trabalho futuro: o rigor e o esplendor estético, a dimensão filosófica e ontológica, a presença do real não referencial, a acção humana sobre o mundo, a memória tatuada em imagens, o jogo irrepetível do espaço/tempo. O tempo.
É verdade que na obra de RS, nenhuma marca biográfica é reconhecível e nenhum traço pessoal é convocado e, no entanto, a memória é o húmus sobre o qual se erguem, insistentemente, as imagens. As pedras da pirâmide Maia ou a imensidão dos Andes não são visíveis e, contudo, são tão simbolicamente presentes como os literais e literários pão, milho, maçã, das odes de Neruda (“Claridade”). É a memória pessoal do jovem chileno, latino-americano que a História reenviou à Europa onde nasceu, assumida sem nostalgia, como raiz funda de um continuum que chega ao presente e traça o devir. Pessoal, mas também colectiva, a memória é ainda, e sobretudo, os vestígios materiais da passagem da mão do homem sobre o mundo, dados a ver nas carcaças de automóveis semeadas na paisagem (“Sinfonia em Ferro Maior”), na geometria metálica do estaleiro abandonado ou das tampas pisadas no chão das cidades (“O Estaleiro”, “Fluxos”), no mármore das colunas e estátuas da Grécia Antiga (“Os Dias de Mármore”).
Importa dizer que o substrato de memória a que nos referimos é contrário a qualquer feição arquivística ou evocativa. Se o passado subjaz ao registo, é no presente que o olhar do artista o interroga, o revela, ousando tocar o mistério da existência humana, essa continuidade aprendida em Parménides, antepassado de Einstein, nos poetas e nos artistas que com ele têm feito o difícil caminho de restaurar a unidade do tempo dividido e dar perenidade ao tempo fugaz. Na verdade, é o Tempo o grande tema da obra de RS, presente de forma explícita (“Ensaios Sobre o Tempo”, “Tuberária Maior”, “A Valsa das Bicicletas”, “O Estaleiro”) ou implicitamente entrelaçado com outras reflexões, históricas, sociológicas, éticas ou estéticas. É o tempo que se nos revela, esplendorosamente, na criação da pintura de Graça Morais (“Registos”), ironicamente, na intervenção plástica sobre os maços de tabaco de Francisco Ariztía (“Fumando Espero”), apressado, circunstancial e/ou carregado de passado e de presente (“Reflexões na Patagónia”, “Mar de Camões”, ”Tudo Vermelho”).
De como esta permanente interrogação filosófica se concretiza nas fotografias é uma questão do plano da Estética, não fosse a beleza um desígnio ético que RS, como todo o grande artista, persegue. As exposições “Da Beleza – Homenagem a Weston” ou “O Estaleiro”, que agora nos é dada a ver, são apenas dois exemplos fulgurantes e luminosos de uma praxis da fotografia como lugar de síntese do olhar questionador, ético e estético sobre o mundo. O nosso mundo.


A ESCRITA DO TEMPO, 
A ESCRITA NO TEMPO E A PRÓXIMA FOTOGRAFIA (de Roberto Santandreu)
Por Isabel Sabino

Aquilo que se fotografa pode ser verídico ou não verídico. Uma só palavra permite alterar o sentido da imagem e as técnicas de manipulação fazem com que duvidemos dos elementos que observamos nas provas finais impressas ou em qualquer outro suporte mediático.
Hoje o fotógrafo não se limita a reproduzir a realidade como um simples elemento da cadeia de captação-impressão-divulgação. O artista transforma essa realidade ao intervir nela, mesmo como uma nota de ficção na qual está subjacente um conceito que poderá induzir o observador a ter uma atitude crítica.
Roberto Santandreu .


No domingo em vésperas de novo confinamento geral, Lisboa resplandecia tão fotogénica ao sol matinal como um quadro pintado por palavras de Cesário Verde, ao seu modo, com notas pícaras. Ao deambular ocasionalmente por perto do estúdio do Roberto Santandreu e a pensar neste texto já parcialmente escrito, presenciei uma cena que me fez mudar de ideias e alterar a versão adiantada:
Um jovem estrangeiro, quase encostado à igreja, tocava e cantava um tango numa pronúncia que tentava aportuguesar um misto de espanhol e italiano.
Era bom. Embora desinteressadamente, ele cantava afinado. A placidez do dia com o calor reconfortante do sol, a menos de uma hora do recolher obrigatório desta fase da pandemia, fez parar duas ou três pessoas, mas logo aconteceu então um momento menos comum quando um casal de transeuntes cedeu à tentação de encetar uns passos de dança, deixando-se envolver cada vez mais pela melodia até a canção terminar. Não dançavam propriamente bem, mas estavam perfeitos no ritmo, na luz, na história.
Inevitavelmente, alguém filmava com telemóvel,  enquanto duas senhoras de idade passavam, vindas da missa, sem prestar atenção, e eu, caminhando muito devagar, voltei-me para trás sem saber se fotografar também ou se, simplesmente, apreciar o momento. Vingou a vida, ou seja, ganhou a passagem inexorável do instante e a antecipação do sabor do seu travo na memória face à fotografia incapturável ou muito provavelmente falhada, incapaz de suster a beleza fugaz daqueles instantes.
Lembrei-me que Kafka terá falado um dia sobre fotografias feitas não a coisas a preservar e sim “para expulsá-las do espírito” , mas ali não foi isso o decisivo na fotografia que não fiz. Foi mesmo a certeza do fracasso antecipado daquela imagem estática ou em filme. Havia todo um contexto que tornava aquele momento raro: a caminhada, o sol que tocava na pele e atravessava a roupa, o perfume fresco e inefável no ar, a leveza do espaço aberto com poucas pessoas, a antecipação das casas fechadas daí a pouco.

Instantes depois daquela cena, novo acaso fez-me encontrar um artista também fotógrafo que vive ali perto e com quem fiquei um pouco à conversa sobre studiums e punctums em rostos familiares ou desconhecidos, diletâncias artísticas, memória e tempo.
Distraí-me, mas, depois de deixá-lo, não me saía da cabeça aquela certeza da decisão sobre a fotografia que não tirei.  Ocorreu-me que o mesmo deve ter acontecido muitas vezes com o Roberto Santandreu, ele sim fotógrafo verdadeiramente profissional, detentor de todo um conhecimento técnico profundo, diversificado e atualizado sobre o meio, com décadas de experiência pessoal nesse campo da criação artística, dezenas de exposições realizadas. Suspeito, aliás estou quase certa que também este fotógrafo conhecedor e seguro já hesitou muitas vezes entre pegar ou não na câmara, acionar ou não o obturador, consciente da escolha possível: umas vezes sim, outras vezes não. Mas, na volta, deve saber que haverá sempre uma nova fotografia para tirar e, mesmo que não corra bem, algo ficará feito ou, melhor ainda, por fazer.
Aliás, já alguém escreveu sobre certas fotos juvenis de Roberto, perdidas depois de uma visita aos 11 anos ao interior da pirâmide de Palenque, no México, sobre as quais ele terá confessado que sobreviveram mais indeléveis as memórias do lugar e a impressão da civilização desaparecida . Logo aí, parece ter constatado que qualquer fotografia, mesmo que não se perca no tempo e nas voltas da vida, estaria condenada a falhar na comparação com o brilho das lembranças (pelo menos de algumas, quando a existência é generosa). E, talvez isso o tenha incitado a continuar a tentar sempre, a procurar cada vez melhor, ao longo do tempo, com o tempo.

No seu trajeto de vida não menos especial do que a longa obra já realizada, quando adoptou Portugal em 1975 Roberto viajava pela Europa há cerca de dois anos, trabalhando em Oslo e Londres depois de frequentar a universidade em filosofia e ser fotógrafo no Chile até ao golpe militar de Pinochet.  Em Lisboa veio estabilizar no trabalho fotográfico a sua procura identitária e existencial que, desde o nascimento em Milão (filho de um diplomata chileno e de uma cantora lírica brasileira), não cessou de procurar estabelecer novos elos de ligação ao mundo, aos seus lugares diversos e, sobretudo, a múltiplas formas e tempos da beleza.
Poder-se-ia talvez dizer que, ao longo da sua carreira criativa, as imagens fotográficas de Roberto Santandreu têm feito por reter algo que se evidencia ao olhar em certos momentos, quando cintila uma beleza intensa e fugaz, consecutivamente procurando uma identificação que a fotografia capta e, ao mesmo tempo, deixa escapar, porque irrepetível.

Agora, no Montijo (novamente), há oportunidade para se apreciar algum do trabalho fotográfico deste autor. Aqui surgem escolhas a partir de séries com datas diferentes, desde as polaroids de 1983 (O tempo, também na capa deste catálogo), que lançam o mote para a reflexão sobre a escrita do tempo que esta exposição de fotografia pode significar,  até às mais recentes imagens de O estaleiro, de 2018 e 2019, que confirmam o carácter de work in progress permanente que, afinal, este trabalho também assume ser: uma escrita no tempo.
Estas últimas são fotos belíssimas a preto e branco que reportam a realidade do estaleiro de Lai Chi Vun, Ilha de Coloane, Macau, China, onde formas se recortam e parecem escrever no espaço como caracteres ou graffitis, cruzando-se ficcionalmente com textos de Juan Carlos Onetti, provenientes do livro El Astillero (1961).
Há também duas fotografias recentes em grandes dimensões (preto e branco) da série Fluxus (2018), a partir de tampas de esgoto. É impossível não recordar as Gravuras de Rua do Grupo Acre (obra de 1975 que consistiu em impressões gráficas a partir de tampas idênticas). Em ambas se descortinam possíveis intenções evocativas do lado subterrâneo e escondido das cidades, ora faceta potencialmente remissiva para a abjeção real ou simbólica com alusões políticas diversas (o Grupo Acre fez questão de fazer as suas gravuras no lisboeta Bairro do Restelo, enquanto no caso de Santandreu as tampas foram fotografadas em várias cidades mundiais), ora simples homenagem à benéfica herança romana de tantas cidades portuguesas, capaz de algo que só depois do século XIX teve honras de prioridade urbana. O tempo, é certo, o tempo da história não deixa de nos acompanhar.
Mais antiga no percurso do autor é a Platinotipia (1997), sensual homenagem ao corpo feminino que, tal como as obras de Diálogos de Pedra (2005) e de Os Dias de Mármore (2018), parecem eleger a luz como forma principal da escrita fotográfica e do modo como esta regista a relação do tempo com a volumetria do corpo, da pedra, da arquitetura, da escultura, evocando o tempo escultor de Marguerite Yourcenar.
Mas também as cores surgem, por exemplo nos registos em cibachrome, em colaboração com pintores (como Graça Morais). E distinguem-se especialmente nesta exposição algumas fotografias da série intensa Reflexões na Patagónia (2010), capturadas num curto período de espera em Puerto Natales, fazendo dialogar imagens locais com frases manuscritas a pastel.
Também dessa altura e novamente a preto e branco, há as fotos da série Mar de Camões, captadas a bordo do navio Sagres em viagem desde Punta Arenas, no Estreito de Magalhães, a Valparaíso.
Em muitas destas obras de Roberto Santandreu podem reconhecer-se relações pictóricas; na plasticidade da imagem (equilíbrios, enquadramentos, claro escuro, cor); na associação evidente a gestos da pintura (mancha, pincelada, ação); na atenção ao trabalho de pintores; e ainda na aproximação da fotografia ao gesto do manuscrito, ao desenho da escrita que representa e oferece um tempo do fazer que dilata o mecânico, a máquina, humanizando-a.
Mesmo que não abrangendo todo o trabalho exposto, parece haver uma procura central transversal que é, simultaneamente, fotográfica, gráfica e pictórica, e que está muito densamente plasmada na série Da beleza (2011): fotos de pimentos a preto e branco, trabalho de estúdio, rigoroso, tão apurado na iluminação necessária à captura da imagem certa como na impressão laboratorial, na senda do fotógrafo norte-americano Edward Weston, a que são sobrepostas frases manuscritas a cores com reflexões estéticas sobre o belo, citando autores filosóficos como Platão, Aristóteles, Plotino, Santo Agostinho, Kant, Baumgarten, Benjamin, etc., com notas pessoais de reflexão do próprio artista.
Talvez a beleza aconteça quando o tempo se suspende e, estranhamente, o sentimos correr.

Voltando atrás à recente manhã de domingo, eu não tinha dúvidas de que estava certa sobre a tal fotografia não realizada. Gosto de preservar da arte algumas coisas da vida como infotografáveis, não desenháveis ou não pintáveis, isto é, mais aptas a serem guardadas naturalmente na memória e por lá fazerem o seu caminho, esquecidas ou transformadas. Experiência pura, vida no estado autêntico a defender, mas nem sei se é exatamente isso, pois no fundo é como se a simples hipótese dessas experiências poderem ser convertidas numa qualquer forma de imagem as desviasse, conceptualmente, nesse mesmo instante, do seu estado puramente vital.
Vem a propósito o dilema de Faulques, o fotógrafo ficcionado por Arturo Pérez-Reverte . Em isolamento voluntário ao fim de muitos anos e de muitas fotografias em palcos reais de guerra nas suas funções de correspondente para revistas e jornais de circulação internacional, Faulques procurava agora em pintura uma espécie de memória de síntese, evocando lugares e pessoas, quadros célebres e fotografia. Um dia recebeu um visitante que incarnava as consequências de uma foto sua captada em tempos. Era alguém que procurava um ajuste de contas com a vida que, pela existência e circulação daquela imagem, achava que lhe tinha sido roubada. Ora, independentemente dessa parte da história, com ou sem vendetta consumada, há um momento em que Faulques/Reverte nos diz haver fotografias impossíveis de tirar: ou se vive, estando em cena, ou se sai de cena, fotografando então - sendo impossível conciliar essa disjunção ontológica, a esquizofrenia da dupla experiência de duas realidades paralelas mas “descoincidentes”, dois tempos impossíveis de viver em simultâneo.
Talvez seja esse o dilema que se mantém subjacente à possibilidade de existência da próxima fotografia, aquela que ainda não foi feita e que, por isso mesmo, vai ter que acontecer.
Alguém disse que era fácil fotografar?










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