sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

Às vezes não tenho jeito para falar de amigos


José Afonso morreu há 37 anos. O nosso comum amigo Henrique Guerreiro ligou-me a dar a notícia. Foi a madrugada mais triste que tinha vivido até aí. Continua a ser. Este fim marcou-me por muito tempo muito intensamente. Todos os anos a chegada deste dia deixa-me em completo desconforto. Doeu. Muito. Nesta imagem estou com José Afonso, em fotografia de Armando Reis, para um trabalho publicado em 1986. É a única fotografia que tenho em que estou com ele. Tempo em que fotografias só com máquinas fotográficas. Mas a memória guarda muitas imagens inesquecíveis. Quem conheceu José Afonso não o esquece. Mas quem não o conheceu pessoalmente também não o esquece. A sua obra não cairá no esquecimento, agora que está a ser reeditada e divulgada com o rigor que ele exigia.

José Afonso é a minha maior referência cultural e cidadã. Tive a sorte de ter crescido a trezentos metros de sua casa, em Setúbal. Comecei por ouvir o meu pai e a minha mãe falarem de um tal Dr. José Afonso que cantava baladas contra "a situação". Em 1973, entrou lá em casa "Cantares do Andarilho". "Vejam bem, que não há só gaivotas em terra, quando um homem se põe a pensar". Que estranho, que coisa nova está a acontecer à música feita no país do fado, futebol e touradas. Eu, que já não ia em festivais desde o fim da instrução primária, fiquei a pensar naquelas palavras. Sem palavras. 

Sempre me interessou o que se fazia no mundo. Sempre virei costas à imundice provinciana do fascismo setubalense. Havia até um clube que ostentava esse nome. Era o clube setubalense, inundado de empresários da cidade. Não eram admitidos "pés rapados", como eles diziam. O meu pai, pequeníssimo empresário, muito bem calçado, recusou-se sempre a entrar no covil. Eu percebi entretanto que existia um sítio chamado Círculo Cultural de Setúbal, mas a inferioridade da minha pouca idade não me permitia ainda subir as escadas do edifício da 5 de Outubro. José Afonso foi um dos seus fundadores e animadores. Um luxo em Setúbal. 

A figura de José Afonso sempre me fascinou. A minha sede de cosmopolitismo nasceu com o seu exemplo. Ele queria conhecer o mundo todo. Queria perceber a vida das pessoas. Foi viver para Setúbal para ser professor do Ensino Secundário. Escolheu Faro ou Setúbal. Porquê? Porque eram cidades perto de aeroportos. Calhou-lhe Setúbal na caderneta de professor. A coisa correu bem. Fez amigos e fez crescer atitudes. Correu mal quando foi denunciado por ter cantado "Os vampiros" numa sessão de convívio. Quem o denunciou foi a filha de um dirigente da bola que não era boa da bola. José Afonso adorava futebol, praticava a modalidade no pavilhão da Movauto, com outros amigos, mas nunca foi em futebóis. Mas, correu mal quando foi denunciado? Pelo contrário: perdeu-se um excelente professor, mas ganhou a cultura musical. A nova situação de desempregado obrigou-o a dedicar-se à música a tempo inteiro. Arnaldo Trindade percebeu o que poderia acontecer. José Afonso assinou contrato com a Orpheu e começou a gravar regularmente. A música portuguesa tornou-se sofisticada e interventiva. Metáforas literárias e visuais escondiam o que o regime fascista não queria que se ouvisse. Mas ouvíamos e percebíamos. 

A distância que senti em relação a alguém com tão elevada estatura intelectual não adivinhou a amizade que depois mantivemos até ao seu fim. Sem distâncias. José Afonso aproximava as pessoas. Tinha um fascínio que nos aproximava dele. Cultíssimo, bem informado, surpreendia-nos com um sentido de humor a que não estávamos habituados. Havia a surpresa. O inesperado. Era um astuto observador de realidades. Isso percebe-se na sua obra. O seu empenho nas causas cidadãs era notório e intenso. Conheci-o ainda nas instalações da 5 de Outubro do Círculo, já depois do dia 25 libertador. O café Tamar era lugar de encontro. Frequentava a sua casa. Tornei-me amigo da família. Até hoje. As estantes de livros daquela sala tão confortável, eram a floresta que me esclareceu hesitações literárias. Houve uma vez que, estando eu lá em casa, um jornalista espanhol que o foi entrevistar pediu-me para fazer as fotografias. Já fui fotógrafo da imprensa castelhana, portanto. 

Com a passagem do Círculo Cultural para a Rua Detrás da Guarda (estranho nome que ainda hoje se mantém, infelizmente), edifício onde hoje existe a Casa da Cultura, a minha intervenção na actividade da colectividade passou a atingir proporções de permanência. Graças à sua ligação ao Círculo participaram em sessões das mais variadas actividades as mais variadas figuras da cultura portuguesa. Como estudante com alguma disponibilidade acompanhei essas actividades por perto. Por perto não; por dentro. Conheci gente do teatro, da música, do cinema e de todas as áreas da cultura artística. Gente de grande talento e também generosidade. Acompanhei representações, carreguei caixotes, desenhei e distribuí a propaganda avisadora. Acompanhei grupos de teatro como "A Comuna" e "A Barraca". Músicos como Adriano, Vitorino, Fausto, Sérgio Godinho, Emilio Cao, Pi de la Serra, Luís Cília, José Mário Branco. Malta do teatro como Manuela de Freitas, Melim Teixeira, João D'Ávila, Jorge Silva Melo, Luís Miguel Cintra. Bem, não cabe aqui muito mais gente. Fiquemos por aqui.

Fui a muitos espectáculos com José Afonso. Era um grande privilégio acompanhar alguém que deixava tudo em estado de espanto com a sua chegada. Eu, munido de grande curiosidade intelectual, bebia as palavras e os sons de tantos artistas de esdrúxulo gabarito. Ficou algumas vezes em minha casa, quando regressava de espectáculos que acabavam tarde. A sua casa, na Bento Gonçalves, era perturbada pelo ruído de autocarros e trânsito intenso a horas que não o deixavam descansar depois de noite de canto e convívio até tarde.  A casa dos meus pais, onde eu então vivia, era mais resguardada. Lembro-me de falarmos de Arte em geral e de música em particular. Lembro-me do que ele não gostava nada e do que apreciava com vontade militante. Uma vez levei-o a uma exposição em que eu me tinha envolvido. Rogério Ribeiro, meu professor, expôs no Museu de Setúbal/Convento de Jesus. Exposição notável. A galeria foi redesenhada por Rogério Ribeiro. Quando lá cheguei com José Afonso, Rogério estava por lá. Apresentei-os. Ficaram amigos. José Afonso falava da exposição a toda a gente que lhe aparecia pela frente. Chegou a agradecer-me aquele contacto. Também "desabafou" comigo a sua opinião sobre as capas dos seus próprios discos. Falava com grande entusiasmo da relação de amizade com João de Azevedo, autor da capa de "Com as minhas tamanquinhas". Conheci mais tarde, muito mais tarde, esse homem maravilhoso que foi João de Azevedo. Percebi aquela amizade. 

Convidei o João de Azevedo para que desenvolvesse a ideia da capa das "tamanquinhas", para uma exposição na Casa da Cultura de Setúbal. Fez vinte trabalhos notáveis, formato 70X100, que depois correram mundo. Desenvolvi uma exposição, também na Casa da Cultura, sobre as capas dos trabalhos gravados com intervenção de designers. Esta exposição foi uma das maiores produções feitas naquela galeria. Tenciono voltar à carga. Muito brevemente será desenvolvido um trabalho que abordará essa inovação na concepção de capas de discos em Portugal. O design das capas dos discos de José Afonso são rigorosos manifestos visuais. 

Os trabalhos gravados de José Afonso estão a ser agora reeditados. Gravações remasterizadas que mantiveram as capas originais concebidas por designers como José Santa-Bárbara, José Brandão, João de Azevedo e Alberto Lopes. Trabalhos visuais que são pérolas. Fui convidado pela família e pelo editor para fazer os cartazes promotores dos lançamentos das novas edições. Trabalho que me honra e alegra. O Zeca (como era chamado pelos amigos) merece tudo. E todos merecem conhecer José Afonso. Recordá-lo é estar com ele. Há pessoas que não morrem. Vivem aqui, todos os dias, na nossa memória e na obra. E que obra. Muito obrigado, Zeca.

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