Neste ano que agora se fina, perdi amigos que nos fazem falta. Perdemos gente que nos faz falta. Mas o ano que agora aí vem vai-nos trazer muitos motivos para termos orgulho no que essa gente fantástica fez por nós. Sem eles nada seria como é e, principalmente, como vai ser. Esta gente que perdemos mudou o nosso mundo.
Olho para o que aconteceu e vejo tudo no feminino. Os atropelos à dignidade das mulheres que estão a acontecer no Afeganistão e no Irão fazem-nos perceber ainda melhor como é importante o que as mulheres andam a fazer.
Destaco por isso mesmo apenas prestações de mulheres nas minhas escolhas do que entendo pelo melhor que vi, escutei e li no ano agora de saída.
MÚSICA - A ascensão da Cátia — Garota não — aos patamares da relevância mais intensa é um bom sinal. A qualidade musical alia-se a uma necessidade de contribuição para causas que pareciam esquecidas pelo meio musical. O seu álbum "2 de Abril" acentua a autenticidade das origens em sintonia com a vontade de reacção a preocupações com o futuro. Não tenho a certeza do que se poderá chamar "música de intervenção", mas este exemplo deve andar próximo da classificação. É o meu disco do ano.
LITERATURA - Na literatura cá de dentro assinalo dois exemplos maiores: Djaimilia Pereira de Almeida a dar-nos novas da maturidade de uma escrita que se renova em cada livro, com o seu mais recente "Ferry", e Isabela Figueiredo que encontrou em "Um Cão no Meio do Caminho" o seu apelo à necessidade de estarmos com os outros, de nos dizer que temos que estar juntos, ponto. Lá de fora destaco Annie Ernaux com o seu "O Acontecimento". A angústia por que passa uma mulher jovem tentando anular o sofrimento, combatendo pela justiça no feminino. Claro que o Nobel veio dar uma ajuda à divulgação da obra de uma grande escritora do mundo que tanto contribui para mudar as coisas.
ARTES VISUAIS - Ana Nogueira convocou Laurie Anderson e John Cage para nos contar uma história. Depois desenhou em esdrúxulos suportes as florestas em que nos perdemos para encontrarmos saídas airosas, ou não. Foi uma belíssima exposição, esta que habitou em Abril a Casa da Cultura de Setúbal e que agora está — até ao fim de Fevereiro — na DDLX, em Lisboa. Outra mostra digna de destaque é "Para sempre e mais um dia", de Teresa Carepo, na Casa da Avenida, em Setúbal, em Maio. Na altura escrevi isto: Teresa Carepo recria ambientes que nos pertencem, que estão sempre perto, com a subtileza do ourives, ou com a perícia do sociólogo.
CINEMA - Cláudia Varejão realizou "Lobo e Cão". Um hino ao inconformismo. As origens não tem de ditar regras. Somos donos do nosso corpo. O destino não existe. Somos nós que desenhamos o que queremos ser. Grande filme que nos reconcilia com a ideia do cinema feito para pensar, a que já nos habituou CláudiaVarejão.
E pronto. São as mulheres do ano, que prometem muito para os anos seguintes. É ouvi-las, ler o que dizem, olhar para o que fazem. Parabéns a todas.