Morreu Rocha de Sousa. Não perco mais tempo. Sobre este homem extraordinário que percebeu o desenho — a Arte — como maneira de perceber melhor o que se passa à nossa volta, pego nas suas próprias palavras e trago-as para aqui, como um desenho inacabado. Muito obrigado, mestre.
"A ESCRITA DENTRO DA IMAGEM
Portanto a urgência de dizer. Dizer apesar dos limites, contra ou por dentro das convenções. Mesmo quando não se refazem, as convenções podem sobrepor-se ou misturar-se. Fernando Pessoa dizia imagens com palavras e usava as convenções, inteiras ou distorcidas, adequadas à forma expressiva de cada heterónimo, poetas diferentes que o habitavam, emergindo misteriosamente para a vida.
Sento-me, exausto, e penso na metamorfose da escrita em imagem ou da imagem em escrita.
No meu livro “AS COINCIDÊNCIAS VOLUNTÁRIAS” tentei dar a ver esse fenómeno, sobretudo o da pintura brotando da escrita, entre composição, ritmo e ressurreição plena do espaço adjectivante. E à medida que participava na guerra, olhando mais tarde para os desastres principais, personagens ilustrados no limite da morte, tudo se fazia imagem, absurda ou conceptual, e mesmo há dias cheguei a perceber que a globalização atual, cercando o mundo, é um espaço que desfaz culturas e não nos oferece alternativas, Ainda nem todos perdemos a memória. A memória que resta, é ainda dimensão de serviços sem conta. Na vida e na arte. Sem conta, reinicia a consciência do ver, não explica o que se vê: abre caminho ao lugar das coisas, confunde-se com elas. E é então que tudo começa: a dicotomia da imagem e da palavra, por exemplo.
Um homem, sentado na fonteira do mundo sem o saber, inventa-se pelas imagens aparentemente perecíveis ou inúteis. o cenário aparente: terra solta, arbustos, a nuvem que passa (imóvel) por cima da sua cabeça, além de uma casa ardida, ruinas de outros tempos, a carcaça de um barco naufragado. O homem olha e não sabe se chega a ver, apropriando-se do sentido das coisas, como fazem os pintores pelo testemunho e pela revolta das suas representações. É através de um certo olhar, de um certo ver, do mundo conceptual e do imaginário interior que muitas coisas se podem reinventar e estimular a resistência da nossa espera. A região das palavras/imagens leva o homem a estremecer, imaginando outra verdade, símbolos e mitologias. Como nos sonhos. Como entre corpos.
Assim digo e imagino a minha pintura, inquieto perante o mundo que me rodeia e cujo sentido se perde cada vez mais. Por isso escrevo as imagens, arbustos, a aparente permanência na vida e os detritos das últimas batalhas. E, embora muitos corpos estejam já retidos na margem do pó, consumindo devagar as raízes no milagre da vida.
Quem fica, e sobretudo os artistas, inventam outros contornos, palavra a palavra, reiterando a cosmografia de novos símbolos — como se o olhar, cavalgando pela perceção a nuvem efémera, pudesse esboçar novos limites de opacidade, improváveis lugares."
Rocha de Sousa, Lisboa, julho de 2016