quarta-feira, 29 de abril de 2020

Miguel Portas

Nasceu no primeiro dia de maio de 1958. Morreu na véspera do 25 de Abril de 2012. Já passaram oito anos. Conheci-o em 2009. Recordo-o agora na véspera do dia em que se assinala o seu nascimento. Recordação pessoal, só isso.

Um amigo comum, o Henrique Guerreiro, sugeriu ao Miguel que eu fizesse uma proposta de imagem para a campanha do Bloco de Esquerda. Vinham aí eleições legislativas. Miguel Portas era o director de campanha. Discutimos as ideias iniciais num jantar entre amigos, em minha casa. Miguel foi claro: "faz o que quiseres, mas que haja política e não falte alegria". Disse mais coisas que me fazem voltar com frequência à memória daquele jantar. Trabalhei horas seguidas no fim-de-semana que se seguiu. Trabalho unipessoal, em frente ao mac, e depois partilhado no ateliê. Proposta aprovada, e roda viva normal iniciada. O ateliê, na altura na Rua do Carmo, era diariamente visitado pelo Miguel, pelo Francisco Louçã, pelo Daniel Oliveira e pelo Pedro Sales. A Paulete Matos fez as fotografias dos candidatos. Trabalho frenético, como se imagina. Convívio enriquecedor.
Nas últimas horas antes do dia de encerramento da campanha, eu e o Miguel ficámos no ateliê a finalizar pormenores. Ao fim da noite, já cansados, percebemos que o nosso mal era fome. Fomos jantar. Saímos do restaurante às duas da manhã do dia seguinte com apetites de mais conversa e outros entretenimentos líquidos. Conversámos até quase ser dia. Percebi, ali a sós com aquele homem tão disponível para os outros, o entusiasmo que o abraçava quando a política é a vontade de resolver problemas e anunciar esperanças. Quando a cultura tem de ser autêntica e só faz sentido partilhada. Quando a solidariedade não é caridade porque é um dever encontrarmos respostas para o sofrimento. A compaixão é conceito filosófico contra o egoísmo. Percebi, naquele curto período de tempo, o carácter e a sólida cultura de alguém que só imaginava a vida vivendo-a com intensidade, alegria, solidariedade e vontade de dar a volta a isto. Diz que se chama Utopia, a esta vontade. Que seja, mas podemos fazer tanta coisa antes de nos aproximarmos da desilusão.
As eleições aconteceram. Os resultados surpreenderam. Fiquei com a ideia de que a intervenção do Miguel, como director de campanha, foi decisiva para a surpresa. Mas ele não parecia surpreendido. Vitórias e derrotas cimentavam-lhe o carácter. Só é derrotado quem nada faz para fazer valer as suas razões.
Outros envolvimentos lhe moldaram a intensa existência. Escreveu e publicou livros. Fez programas de televisão. Dirigiu publicações impressas. Foi eleito para o parlamento europeu. Sempre com a preocupação política por perto. Tudo é política, pensava. E tinha razão.
Entretanto íamos tendo encontros. Continuávamos a conversa anterior que acabava sempre no clássico: temos que combinar um jantar, para pôr a vida em dia.
Mas a vida parou para ele. Não foram possíveis jantares, nem copos, nem campanhas políticas. A memória do que podíamos ainda conviver deixa-me triste.
Foi muito bom conhecer Miguel Portas. Recordo-o com saudade. Tantas vezes me lembro do que pensaria disto tudo — deputados de extrema-direita no parlamento, Europa a afundar-se… — e adivinho uma possível resposta: isto acontece; temos é que fazer qualquer coisa. É o que fazemos. É o que o Miguel faria.