segunda-feira, 5 de agosto de 2013

REFRESCO | Próxima exposição a inaugurar dia 9 de agosto. Fotografias de Flávio Andrade. O texto que se segue é de José Miguel Sardo, e "retrata" muito bem estes excelentes trabalhos do Flávio. Convidados.

O PAÍS DO VERÃO

É um vasto território desértico, aberto, oficialmente, apenas 3 meses por ano. O tempo suficiente para que os estranhos hábitos e regras em vigor não se propaguem para lá da fronteira dos chapéus de sol. O tempo suficiente para não cair no hábito de ignorar horários e calendários, de saborear, a horas certas, a inconsciente futilidade dos dias úteis em gelados e bolachas americanas. Apenas três meses de época balnear, o tempo indispensável para que ninguém se aperceba que passou de uma rotina à outra, em contra mão ou contra a corrente, desde o primeiro momento em que decidiu tirar o relógio e descalçar os sapatos. 

A praia é o outro lado do espelho e ao mesmo tempo o reflexo, ensolarado, dos restantes 9 meses do ano. É horizonte para o homem que habita num rés do chão, bronzeado para a pálida funcionária pública, terapia de desporto ou de iodo para o sedentário empregado bancário, omega 3 para os carnívoros, tempo livre para os que nunca conseguem ter tempo, atividade para os que têm tempo de sobra. A praia é o avesso e o pesponto das cidades. Terreno de convívio no areal de subúrbio, terra de refúgio na baía selvagem (entre duas arribas) e de conquista na praia exótica perdida num destino distante.

Arrebatada aos pescadores, a praia é uma vitória do proletariado, a recompensa da classe média e um dos privilégios das classes altas. Um lugar ao sol para quem não quer ficar na sombra, uma sombra para evitar a insolação. Uma democracia balnear, sob o regime das marés que sobem e descem, do nascer e do pôr do sol, dominada pelo mercúrio dos termómetros e vigiada por três bandeiras coloridas que marcam o tempo que passa e o tempo que faz. Um território onde, e porque o prazer prolongado pode sempre provocar angústia - como o sol do meio-dia ou o mar da maré alta – a única autoridade vigente é um (nadador) salvador.

Neste cenário onde tudo tem de ser aquilo que parece, onde as fotografias de férias decalcam pessoas nos postais ilustrados e as fotografias documentais decalcam os postais ilustrados nas pessoas, é raro que um fotógrafo ouse passar por um simples mirone.

Em “Refresco”, o preto e branco é o elemento essencial dessa forma de “nudez” vislumbrada apenas por alguém atento, num ínfimo momento de desatenção, tão curto e diáfano como o famoso "raio verde" do pôr do sol. Sem cor nem outra distração, Flávio Andrade captura banhistas desatentos e despreocupados, aprisiona-os nos seus desejos mais íntimos e mais reprimidos de lazer, sob um sol de chumbo e dentro de um mar metálico. A preto e branco os corpos ofuscados são silhuetas, um buraco escavado na areia transforma-se numa sepultura, um homem e uma mulher dentro de água parecem ter sido abandonados num mar morto, a passeata de um sexagenário torna-se fuga para tentar despistar o olhar de um polícia de choque pintado numa parede.

Na encenação fotografada (e não na fotografia encenada) a areia parece condenada a cristalizar-se em betão fazendo adivinhar, ao longe, uma cidade. O mar torna-se espesso, alcatroado. Só os olhares e os gestos suspensos quebram a estranha melancolia do "negativo" dos dias de praia. Em todas as imagens sopra um silêncio ligeiro como uma brisa de verão, incapaz de despentear a pose dos que não posam para a fotografia.

A praia de "Refresco" é um território que toda a gente reconhece mas onde ninguém se revê. Uma imagem em 24 por segundo de um vídeo de férias. Uma recordação vaga de verão carregada dessa resignação que nos invade nos primeiros dias de agosto e da nostalgia dos primeiros chuviscos de inverno. Um refresco, conservado no congelador, como uma promessa de melhores dias de sol nesse território desértico, aberto, oficialmente, apenas 3 meses por ano.
José Miguel Sardo  | Jornalista 

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