quarta-feira, 15 de junho de 2005

Edward Hopper | António Mega Ferreira



NIGHTHAWK, 1942

Está tudo dito - o vestido
vermelho e
a tensa indecisão
da mulher que o veste -
a imprecisa circunstância,
por estar ali, porque há-de
estar ali, do que jogou
à roleta russa e ganhou
o direito ao purgatório eterno
da insónia -
e o que está com a mulher
ruiva, ele de chapéu,
perguntando-se se alguém está
com alguém
no campo iluminado deste quadro.

Só não se disse a cegueira
fatal da fachada mesmo em
frente
como o que está diante
daquele que não se vê
as amplas escuras janelas
(entreabertas?)
deixando que o mais negro
da noite
as ilumine, coisas
estáticas (mortas?)
na imobilidade geral
da cena
tão naturalmente irreal
que ninguém, é certo,
a não ser o olhar de Hopper,
fixamente á espera que
alguma coisa mexesse
na trágica serenidade que
o mundo encerra.

Este poema pertence ao mais recente livro deAntónio Mega Ferreira, pubicado pela Assírio & Alvim.
Um livro que convoca memórias, instantes, amizades, passagens pelo tempo - "O Tempo que nos cabe", é o título.
Um belíssimo trabalho, (capa com polaroid de Ilda David) com belíssimos poemas lá dentro.
Uma obra que merece ser lida e onde apetece voltar, como quem volta aos lugares bons, onde aconteceram coisas boas.
Um bom livro, portanto. JTD

Pintura de Edward Hopper