quarta-feira, 31 de março de 2004
A cor do voto
Saramago avisou que o seu mais recente livro era para causar polémica.
Os livros também servem para isso? Claro. Mas acima de tudo, estamos perante uma obra que interroga, que levanta questões sobre a participação das pessoas na democracia. Quase na generalidade, a nossa participação como cidadãos está reduzida ao voto. Saramago numa abordagem interessante:
"Em geral não costumo votar, mas hoje deu-me para aqui, A ver se isto vai servir para alguma coisa que valha a pena. Tantas vezes foi o cântaro à fonte, que por fim lá deixou ficar a asa, No outro dia também votei, mas só pude sair de casa às quatro, Isto é como a lotaria, quase sempre sai branco, Ainda assim, há que persistir, A esperança é como o sal, não alimenta, mas dá sabor ao pão, durante horas e horas estas e mil outras frases, igualmente inócuas, igualmente neutras, igualmente inocentes de culpa, foram esmiudadas até à última sílaba, esfareladas, viradas do avesso, pisadas no almofariz sob o pilão das perguntas, Explique-me que cântaro é esse, Porque é que a asa se soltou na fonte, e não durante o caminho, ou em casa, Se não era seu costume votar, porque é que votou desta vez, Se a esperança é como o sal, que acha que deveria ser feito para que o sal fosse como a esperança, Como resolveria a diferença de cores entre a esperança, que é verde, e o sal, que é branco, Acha realmente que o boletim de voto é igual a um bilhete de lotaria,"
Titulo: Ensaio sobre a Lucidez
Autor: José Saramago
Edição: Caminho
JTD