sábado, 10 de janeiro de 2004

BB no seu melhor

Baptista-Bastos assina hoje no suplemento MIL FOLHAS do PÚBLICO, um belíssimo texto evocando a existência atribulada do poeta e jornalista Eduardo Guerra Carneiro. As crónicas de BB continuam a fervilhar no melhor verbo. Aqui vai um cheirinho:

"Fui camarada de jornais e companheiro de noites do Eduardo. Viajei com ele muitas viagens pelos balcões de bares inverosímeis, e batuquei muita prosa na banca ao lado da banca onde ele tocava o harpejo da palavra. O sítio em que ele estava era sempre asseado e nítido; o que ele escrevia era sempre claro, limpo e decente. Os tempos não eram propícios à fraternidade, e a solidariedade começava a estar desempregada no coração das coisas e na acção dos homens. Creio que, ocasionalmente, o Eduardo Guerra Carneiro foi a representação dos melhores de nós: arranhados, feridos, surpreendidos, perplexos, removidos, um cenário sombrio e sujo no fio do horizonte.

Caiu a prumo. A prumo, como foi a sua vida. Ele sabia, como poucos, que não há viagens sem imprevisíveis sobressaltos. Mesmo assim, não desistiu. Afastou-se temporariamente, até que um novo leitor peça emprestado aos seus poemas o diálogo que forma a conjunção de circunstâncias."

Também Francisco José Viegas Aviz., no passado dia 3, assinala de uma forma notável a passagem de Eduardo por esta vida. Dois textos que realçam a ternura da amizade e colocam a palavra ao serviço das recordações maiores. Já a referência de José Pacheco Pereira Abrupto é para esquecer. A saudade das pessoas que apreciamos não deve ser esmorecida pelas causas da sua morte. O direito a existirmos não anula, nem por imposição dos limites de uma qualquer consciência, o direito de querermos deixar de existir. Obrigado, Eduardo. Por nos ter deixado estes poemas. E para terminar, aqui vai mais um texto de A NOIVA DAS ASTÚRIAS. JTD

Já poeta não sou se a voz calo
e nesse estado estou, que é não estar.
Já poeta não sou se a voz não ergo,
para abrir outra porta, além do espelho.
Já poeta não sou quando estou cego
e adio essas linhas, marcadas a negro.
Já poeta não sou se o tempo perco,
no novelo enredado, no vício do prego.

Por isso assim escrevo, entre sangue e ouro,
rasgando as cortinas feitas pelo medo.
Por isso assim escrevo, escravo das palavras,
deixando a corrente inundar o Outro.
Toda a arte poética não deixa de ser
fogo de artifício - para o Outro ver.