domingo, 14 de dezembro de 2003

O Rei Mendigo

Outubro brilhava no parque. Eu estava sentado muito quieto, debaixo do sol, procurando prestar atenção às pequenas mudanças. Lula sorria na primeira página dos jornais. Lembrei-me dele antes de ter mandado alisar a barba e o cabelo, antes de ter suavizado a voz e as maneiras, e da justa ira com que atacava a burguesia. Os jornais também falavam na iminênciade de uma guerra. No “Titanic”, o filme, percebe-se em meio ao caos, enquanto o navio se afunda num rápido estertor, que um dos passageiros usa no pulso um moderno relógio digital. A mim, ali no parque, aquela expressão, “iminência de uma guerra”, sugeria uma incoerência do mesmo tipo. Foi então que me sobressaltou um alvoroço de asas. Ergui os olhos e vi um bando de pombos desorganizando o azul puríssimo do céu. Alguma coisa os assustara. Olhei mais atentamente e reparei que em meio às aves esbracejava um brinquedo mecânico. O estorpício soltou-se do bando, num ímpeto, e veio mansamente pousar-me aos pés. Agarrei nele. Era uma águia de plástico. A seguir surgiu um mendigo. Um sujeito de pele encardida, a cabeleira repartida em grossas tranças, comprida barba enovelada. Vinha muito direito. Muito seguro dos seus andrajos. Sentou-se ao meu lado, tirou-me o brinquedo das mãos e só então se apresentou:
“Boa tarde. Eu sou o Rei do Parque.”


Assim começa um dos contos incluidos no livro Catálogo de Sombras de José Eduardo Agualusa.
São dezoito belíssimas histórias, estas histórias que a Dom Quixote editou.
Agualusa é um escritor que merece a nossa visita frequente.
Não o perca de vista.

É também cronista, na Pública do Público. Aos domingos convida-nos a franquear as suas Fronteiras perdidas. Aqui vai um excerto da excelente história de hoje - Almas em trânsito

Sentou-se à mesa da cozinha e terminou de beber o café. Acendeu um cigarro, enquanto os seus olhos tropeçavam no aviso: “O tabaco mata”. Qualquer dia, pensou com desgosto, colocam ameaças semelhantes nas xícaras de café ou nas garrafas de vinho. A seguir cairão sobre os pastéis de Belém e os ovos moles de Aveiro-”o açucar pode causar impotência”-, e depois, porque parar?, chegará a vez do leitão da Bairrada. Ele vinha de longe, de um tempo em que os banhos de sol, em praias de águas límpidas, eram ainda um prazer sem restrições. Agora são um perigo. Nunca foi tão perigoso viver. Deviam, isso sim, colocar avisos (para os nascituros) nas salas de parto: “Cuidado, malta, viver envelhece. A longo prazo, inclusive, pode conduzir à morte”.

José Eduardo Agualusa. Grande autor da língua portuguesa. Leia-o, ele merece. E você também. JTD