segunda-feira, 22 de dezembro de 2003

Dei com uma velha revista...

Fui para a cama com milhares de miúdas e não me lembro do rosto da maior parte delas.
Não te digo isto para me fazer engraçado. No ponto em que estou com o dinheiro todo que ganho e todos esses lambe-botas que tenho na mão, podes calcular que não preciso cacarejar no vazio.
Digo-o porque é verdade. Tenho trinta e oito anos e esqueci quase tudo na vida. É verdade para as miúdas e é verdade para o resto.
Dei com uma velha revista do género daquelas que servem para limpar o cu e vejo uma fotografia minha de braço dado com uma gaja.
Então leio a legenda e fico a saber que a dita rapariga se chana Laetitia, Sonia ou não sei o quê, olho mais uma vez para a fotografia como quem diz: “É claro Sonia, a moreninha da Villa Barclay com os seus piercings e o cheiro a baunilha...”
Mas não. Não é isso que vem até mim.
Repito ”Sonia” como um parvo e pouso a revista à procura dum cigarro.
Tenho trinta e oito anos e vejo perfeitamente que tenho a vida numa merda. Lá em cima a tinta salta devagarinho. É só passar o dedo e são semanas inteiras no lixo. E até te vou dizer, um dia estava eu a ouvir falar da guerra do Golfo, viro-me e digo:
- Foi quando, a guerra do Golfo?


É neste estado que ficam as criaturas que só folheiam certas revistas.
Este é um pequeno excerto de um texto incluido no livro “Queria ter alguém à minha espera num sítio qualquer” de Anna Gavalda.
São doze excelentes novelas corrosivas mas com grande noção da existência humana. Personagens que se cruzam connosco a toda a hora, e personagens que somos nós próprios no confronto com a realidade, por vezes dura, que nos espera diariamente.

Cruzo-me com as pessoas. Observo-as. Pergunto-lhes a que horas se levantam de manhã, como é que vivem e qual é a sua sobremesa preferida, por exemplo. Depois penso nelas. Penso nelas o tempo todo. Revejo a sua face, as suas mãos e até a cor das suas meias. Penso nelas durante horas, anos mesmo e depois um dia, escrevo sobre elas.

Anna Gavalda recebeu o grande prémio RTL LIRE 2000.
A Dom Quixote edita Gavalda em Portugal. A não perder. Na minha opinião, claro. JTD