quarta-feira, 31 de março de 2004

A cor do voto



Saramago avisou que o seu mais recente livro era para causar polémica.
Os livros também servem para isso? Claro. Mas acima de tudo, estamos perante uma obra que interroga, que levanta questões sobre a participação das pessoas na democracia. Quase na generalidade, a nossa participação como cidadãos está reduzida ao voto. Saramago numa abordagem interessante:

"Em geral não costumo votar, mas hoje deu-me para aqui, A ver se isto vai servir para alguma coisa que valha a pena. Tantas vezes foi o cântaro à fonte, que por fim lá deixou ficar a asa, No outro dia também votei, mas só pude sair de casa às quatro, Isto é como a lotaria, quase sempre sai branco, Ainda assim, há que persistir, A esperança é como o sal, não alimenta, mas dá sabor ao pão, durante horas e horas estas e mil outras frases, igualmente inócuas, igualmente neutras, igualmente inocentes de culpa, foram esmiudadas até à última sílaba, esfareladas, viradas do avesso, pisadas no almofariz sob o pilão das perguntas, Explique-me que cântaro é esse, Porque é que a asa se soltou na fonte, e não durante o caminho, ou em casa, Se não era seu costume votar, porque é que votou desta vez, Se a esperança é como o sal, que acha que deveria ser feito para que o sal fosse como a esperança, Como resolveria a diferença de cores entre a esperança, que é verde, e o sal, que é branco, Acha realmente que o boletim de voto é igual a um bilhete de lotaria,"

Titulo: Ensaio sobre a Lucidez
Autor: José Saramago
Edição: Caminho

JTD

terça-feira, 30 de março de 2004

Michael Nyman


A minha amiga Sandra Passos ligou-me:"Vamos ver o Michael Nyman? Vai estar no coliseu no dia 15 de Abril".
E eu:"Vamos a isso!"
Tenho a impressão que nunca faltei a um concerto, em Portugal, deste inglês, londrino, autor da música de "O Piano". Não é esta a sua obra que mais me impressiona, mas é boa música. Todos os discos de Michael Nyman são uma surpresa e uma festa. Gosto muito de "O Cozinheiro, o Ladrão, a mulher Dele e o Amante", que animou o filme com o mesmo nome.
Em Lisboa vai estar com Sarah Leonard e com um quarteto de cordas. Vai ser, concerteza, um espectáculo memorável. JTD

Michael Nyman | Concerto
Dia 15. Abril. Coliseu de Lisboa
22 horas

domingo, 28 de março de 2004

Onde fica Auschwitz?

Porque ontem foi Dia Mundial do Teatro, fui ver a peça que o Teatro Animação de Setúbal tem em cena.
O trabalho é assinado por Carlos Curto e Rui Zink, e é uma interessante interpretação dos problemas levantados pela chamada Era da Informação. A Era do Faz-de-conta elevada a expressão de plena existência.
O tempo em que há quem pretenda que quem não aparece na televisão não existe. A sátira aos comportamentos pouco humanos dos passatempos televisivos. A violência sobre os cidadãos desprotegidos. A crítica às expressões artísticas pouco integradas no seu tempo. Tudo isto abordado com uma inteligência e com um sentido do humor que ultrapassa, não poucas vezes, o real.

Mas atenção, não é a anulação do real pelo imaginário. O que aqui se representa, não se insere numa classificação divertida das recentes formas de teatralidade ligeira. As referências são literárias. Lá encontramos, escondidos nas muito boas interpretações dos actores, Júlio Dantas e George Orwell. Só para dar dois exemplos que me pareceram óbvios. Dantas surge como motivo que inspira a sátira ao teatro declamado e puritano. Orwel, porque quando escreveu 1984, vislumbrou a sociedade actual. A sociedade controlada pelo poder, no caso real o poder económico. E o que são as estações de televisão e os jornais de “referência”, senão eficazes instrumentos dos detentores do poder económico? O "Big Brother" está aí e a gente às vezes não dá por isso.

Sobre o titulo da peça, e porque já foi alvo de ataques e interpretações menos correctas, tenho a dizer o seguinte: Um titulo não é, bastas vezes, uma ilustração literal do que se vai passar. É sim uma sugestão para a leitura, sempre com a intenção promocional, é certo, mas em muitos casos metafórica.
Dou apenas três exemplos, que me surgem ao acaso. Quando a escritora Fernanda Botelho lança o titulo: “Esta Noite Sonhei com Brueghel”, não está a fazer um tratado sobre a vida e obra do pintor. Quando José Saramago escreve “Manual de Pintura e Caligrafia” não está a pensar ensinar ninguém a pintar ou a fazer letrinhas bem alinhadas. E Já agora, quando António Mega Ferreira fala de “A Borboleta de Nabokov”, não está a falar do fascínio do criador de “Lolita” por esta espécie. Na peça do TAS, "Onde fica Auschwitz?" é a expressão do pretexto para os cortes que nos fazem pensar. O actor Carlos Rodrigues, assume um ar de pinguim taralhoco que apenas faz essa pergunta, sempre que a violência se está a tornar preocupante. Tão pouco e tanto.

E pronto. É o que me é possível dizer, pelo menos para já, sobre esta obra de humor um pouco escuro, mas com enorme claridade na exposição argumentativa. JTD

sábado, 27 de março de 2004

sexta-feira, 26 de março de 2004

Fotografia hoje



SEBASTIÃO SALGADO vem a Portugal e vai estar no CCB a convite da revista VISÃO, para uma conferência sobre O Fotojornalismo Hoje.
Salgado é também o presidente do júri do IV Prémio VISÃO Fotojornalismo.

Para além do enorme talento como fotojornalista, Sebastião Salgado é detentor de uma presença cativante como orador.
As suas ideias acerca do mundo e do seu estado de conservação ao nível humano, são visões de um homem que conhece por dentro as suas misérias e sofisticações. Um olhar atento e competente sobre a vida e a luta pela sobrevivência de grande parte das mulheres e homens do planeta. JTD

Conferência: O Fotojornalismo Hoje
Oradores: Sebastião Salgado, Lélia Wanick Salgado, Robert Koch e Ruth Eichhorn
Moderador: Carlos Cáceres Monteiro
Local: Centro Cultural de Belém (Sala Quedá)
Dia 27 de Março, 16 horas
Entrada livre

quarta-feira, 24 de março de 2004

Aqui mesmo ao lado, em Espanha, estão a ver?

António Mega ferreira Faz O jogo das palavras todas as quintas-feiras na Visão.
Na última, termina com uma frase que recupera a expressão utilizada nas eleições nos Estados Unidos. Deu-lhe a volta, e ainda ficou melhor, na minha opinião:
"Para aqueles que acham que é a economia que resolve tudo (até os resultados eleitorais) aqui está uma boa lição, mesmo à nossa porta: é a política, estúpidos!"
JTD

Honestidade intelectual

Quando um dos meus quadros não me agrada, quando não o acho bom, não é autêntico, mas assino-o da mesma maneira, para que não acusem outra pessoa. Pablo Picasso

Um divertido livro que nos revela o genial Picasso na primeira pessoa.
O que ele pensava dos amigos, da ditadura, dos maçadores, da pintura e dos pintores.
Estou a reler esta obra editada em 2000, pela Contexto. É uma sugestão. Penso que a edição não está esgotada.

Titulo: Picasso por Picasso
Organização: Paul Désalmand
Tradução: Mário Dias Correia
Capa: Fotografia de Man Ray
Edição: Contexto

JTD

reBlogue

Com ditadores e terroristas não há conversas! Ouviram? Não há conversas!
Depois de visitar Portugal, Tony Blair vai à Líbia cumprimentar Muhammar Kadhafi
Daniel Oliveira Barnabé

terça-feira, 23 de março de 2004

Parabéns a você

Lúcia, a "última pastorinha" de Fátima, faz hoje 97 anos. No convento carmelita de Coimbra onde vive, as dezoito monjas que ali vivem em clausura vão poder conversar durante o almoço [enaaa!] e dar um abraço à aniversariante [iuupiiii!]. Estragadas com mimos, hein?
ruitavares Barnabé

segunda-feira, 22 de março de 2004

Eles Não Conhecem o Herman

De segunda a sexta-feira, o canal brasileiro GNT tem o mérito de apresentar um dos melhores "talk-shows" que alguma vez passaram na televisão em Portugal. É o Programa do Jô, um "remake" do modelo americano tal como é o HermanSic, mas a milhas de distância do português. É que o Jô Soares tem o condão de não humilhar publicamente os seus convidados (mesmo quando o seu interlocutor pensa que é a reencarnação de Jesus Cristo), conseguindo sempre retirar uma belíssima história da vida daqueles que aceitam ir ao programa.

Ele até pode brincar com as situações, mas com graça, sem roçar o ordinário ou o boçal a que estamos habituados na televisão portuguesa e, em particular, no HermanSic. E ainda por cima tem piada. Mais: ele é culto. Não tem uma cultura superficial só de televisão ou do "metier" como mostra o Herman.

De uma maneira geral, Jô sabe do que fala e valoriza a conversa dos seus convidados. Mas também não assume a atitude do sabichão enfadado. Pelo contrário. Sabe ouvir e deixa-se surpreender pelas histórias dos seus convidados. E esse é talvez o seu maior mérito. O Programa do Jô é aliás um somatório de qualidades: tem bom "papo" como dizem os brasileiros, boa música (muito jazz) e um ambiente descontraído, sem o "show off" de HermanSic.

Por tudo isto, fico espantada quando consulto alguns artigos brasileiros sobre o apresentador e verifico que o Jô é muito criticado por falar mais do que os seus convidados. Ah! Isso é porque não conhecem o Herman!

SOFIA RODRIGUES, Público. Domingo, 21 de Março de 2004

domingo, 21 de março de 2004

Helder show

Acabo de chegar da sessão organizada por Fátima Medeiros, na Culsete, em Setúbal. Foi notável. Fátima apresentou a iniciativa com entusiasmo e bem. Manuel Medeiros falou sobre a relação dos poetas e dos editores com os livreiros. Foi eloquente e objectivo. Manuel Rosa falou sobre o prazer de dar corpo a um livro e, respondendo a Manuel Medeiros, sobre o papel do livreiro na sua promoção. Fernando Cabral Martins apresentou Helder Moura Pereira, com a expressão do profundo conhecimento da sua obra.
Chegou a vez de Helder. Brilhante. Entre o emocionado e o emocionante, ofereceu-nos uma saborosa tarde de conversa. Percorreu os livros que tem escrito, lendo os poemas que o fizeram como poeta. Leu um lindíssimo inédito. Foi muito bom estar ali. Bela forma de comemorar a poesia. JTD

Dia da poesia

Há um adesivo que se tira, um cheiro
a fritos que se leva. E não é tudo.
O coração admirado por lhe ligarem,
o corpo agitado como alma
intanquila, e tantas más ideias na cabeça.
Lá da janela, com um livro na mão,
acenavas-me, adeus, imaturo homem,
adeus. Obrigado, Deus meu, mais
uma vez, por tudo isto e mais o que
não fiz, nem o casaco tiraste e logo
me atacaste, talvez gostasses desse cheiro
a fritos e do meu ar assim distraído.

Helder Moura Pereira, A TUA CARA NÃO ME É ESTRANHA", Assírio & Alvim.

sábado, 20 de março de 2004

António Cabrita

Como amanhã é dia de poesia, estas páginas já estão a comemorar. Hoje vamos conviver com António Cabrita. Poeta, crítico, homem do cinema, da imagem, das opiniões intensas e sérias sobre a Arte e a natureza dos artistas. O poema aqui colocado está prantado no livro "Os Abysmos da Mão", publicado pela Íman, em 2001.

Os olhos em tudo são inábeis,
menos no sonho. Para mais
em Abril,
com os aguaceiros a rilhar
as velas persianas de ripinha
e o condenar à espórtula
as salamandras. E
que me impede de sofucar?
O roçar do tempo nos teus pulmões,
os olhos em tudo inábeis,
menos
nas mãos que me desposam.
Por isso perdura o que amo
no incicratizável susto
do mexicano Salvador Novo:

"Um domingo
Epifania
não voltou mais a casa".

O mapa da retina?
A menina dos meus olhos,
o seu punho no meu gume.


E pronto. Até amanhã e boa poesia. JTD

quinta-feira, 18 de março de 2004

Domingo é dia de poesia

O próximo domingo é dia mundial da Poesia. Como vivo em Setúbal, vou aceitar o convite que Fátima Medeiros me dirigiu, e lá estarei na sua livraria, a Culsete, às cinco horas da tarde. O programa é de primeira. Vão lá estar os meus amigos Helder Moura Pereira e Manuel Rosa. Helder é um poeta que surpreende em cada livro que vai tendo a gentileza de pôr cá fora. Manuel é o seu editor - O homem da Assìrio & Alvim. É também o responsável pele estética das publicações. O livro que editou de Helder, para além da belíssima capa, é uma grande demonstração do talento do poeta. O titulo é divertido: "A TUA CARA NÃO ME É ESTRANHA". Aqui vai o primeiro texto da obra.

"As coisas passaram-se assim: meu avô
teve um desgosto de amor, quis matar-se.
Atirou-se do Castelo de S. Filipe
mas não se matou, ficou ali, primeiro
a gemer e depois inconsciente, julgava
que tinha morrido. Um pastor de ovelhas
encontrou-o e levou-o para o hospital.
No hospital meu avô percebeu
que não tinha morrido, a irmã da gerente
interessou-se por ele e casaram.
Do casamento nasceram três filhos,
meu pai foi um deles. Sou portanto neto
do acaso e o acaso é o meu pai."

Não se esqueçam, é no próximo domingo. JTD

Mano preto/mano branco

Os meus amigos Jaime Pinho e Alberto Lopes, professores na Escola Secundária D. João II, em Setúbal, lançaram-me o desafio: Editar o trabalho dos alunos do 9º ano da escola sobre o problema colonial. Desafio aceite. Os testemunhos recolhidos pelos estudantes são de uma impressionante qualidade humana. O racismo e o colonialismo tratados como nunca o foram até hoje. Relatos reais e emocionantes. O livro, com o titulo "Mano preto/mano branco", será colocado nas livrarias a partir de segunda-feira.
O extraordinário escritor angolano Pepetela, é o autor do sentido prefácio.
É esse texto que aqui partilho convosco.

"Este trabalho que professores e alunos do 9º ano da Escola Secundária D. João II nos apresentam é comovente por mais que uma razão. Por um lado, pelo labor de recolher testemunhos de vidas que não puderam viver, os jovens são levados a reflectir sobre experiências alheias e neste caso vivências em países muito afastados pela geografia senão pela emoção. E também fazem as pessoas recordar os seus passados, hoje com certo distanciamento psicológico, mas certamente ainda com muito sentimento. Adivinha-se facilmente uma lágrima num canto de olho em cada resposta dada.

Para a juventude portuguesa, o passado ainda recente de Portugal (e particularmente o seu passado colonial) deve ser qualquer coisa que se entende quando se estuda, mas pouco se sente, porque pouco falado em casa, quase envergonhadamente escondido. São trabalhos como este que fazem as pessoas entrarem na pele do outro e sentirem com ele as amarguras e o sofrimento que regimes sociais injustos possam ter produzido em povos com os quais conviveram. Conhecer as injustiças da situação colonial, reconhecer que os nossos antepassados talvez afinal não tenham sido tão heróicos como muitos se esforçaram por nos fazer crer e que terão mesmo que inconscientemente contribuído para o sofrimento dos outros, isso não nos diminui, nem sequer diminui os nossos antepassados. Reconhecer as nossas fraquezas significa ter uma grande força de carácter e capacidade de mudança.
Para que as pessoas tenham um relacionamento mais sadio e mais puro, é necessário que se saiba exactamente aquilo que as afastou a um momento dado. Então, as diferenças entre as pessoas podem ser compreendidas, aceites como um bem inestimável e servir para um enriquecimento mútuo. É o que pode e deve passar-se com os povos de Portugal e de Angola e de Moçambique, para só referirmos os que estão relacionados neste estudo. Poderíamos alargar a ideia para todos os povos do mundo.

Pessoalmente, gostaria de agradecer ao colectivo desta escola por me terem dado a conhecer este trabalho tão belo e me honrarem pedindo-me estas modestas linhas."

Titulo: Mano preto/mano branco
Autores: alunos do 9º ano da Escola Secundária D. João II. Setúbal
Capa: Ilustração de Eurico Coelho
Design/paginação: José Teófilo Duarte | Eva Monteiro [DDLX]
Edição: Estuário Publicações

JTD

quarta-feira, 17 de março de 2004

Viva quem canta, viva quem escreve

A história de um homem que escreve o que for preciso. O regresso de um congresso de escritores anónimos em Istambul, leva-o a fazer escala em Budapeste. A lingua húngara, "A única que o diabo respeita", e o enamoramento com a sua professora, fazem-no andar num corrupio entre o Rio de Janeiro e a nova cidade de eleição. Escreve romances, com pseudónimo, que se tornam grandes sucessos. Uma dessas obras é a "autobiografia" de um alemão que aprende português escrevendo no corpo de mulheres nuas.
O retrato de um escritor anónimo que vive dividido entre dois livros, duas mulheres, duas cidades, dois idiomas.
É o novo romance de Chico Buarque.
Vale a pena ouvir a opinião de José Saramago: "Chico Buarque ousou muito, escreveu cruzando um abismo sobre o arame, e chegou ao outro lado. Ao lado onde se encontram os trabalhos executados com mestria, a da linguagem, a da construção narrativa, a do simples fazer. Não creio enganar-me dizendo que algo novo aconteceu no Brasil com este livro."

Titulo: BUDAPESTE
Autor: Chico Buarque
Capa: Atelier Henrique Cayatte, com a colaboração de Rita Múrias.
Edição: Dom Quixote

JTD

terça-feira, 16 de março de 2004

Fia-te na virgem e não corras...

Após o encontro com o Presidente da República
Durão Barroso: "Não há ameaças credíveis dirigidas ao nosso país"
O primeiro-ministro, Durão Barroso, assegurou hoje que não há "qualquer ameaça [terrorista] credível dirigida contra o nosso país", na sequência dos atentados terroristas de 11 de Março em Madrid que mataram 201 pessoas e feriram mais de 1500. 

Público, hoje.

domingo, 14 de março de 2004

11-M

A televisão avariou há um mês e o homem que devia nunca chegou a aparecer. As imagens de Atocha não entraram lá em casa. (Que ao menos o horror, que me dói no estômago, fique longe da sala de jantar). Manolo Montálban, se fosses vivo, talvez amanhã no "El Pais" escrevesses as palavras que eu precisava de ler. Hoje, não me sais da cabeça (precisava de ti amanhã, mas no teu lugar vão estar os períodos infelizmente monocórdicos do Eduardo Mendoza).

Ao revolver os mortos pelo terror em Madrid, e os estilhaços do 11-M, penso em ti e na falta que me fazes, e em Fernando Assis Pacheco, que se fosse vivo estaria hoje em Madrid, exercendo a sua "profissão dominante". A nossa vida prossegue: ontem, na rua Tomás Ribeiro e em Madrid, um rapaz e uma rapariga muito feios beijaram-se desalmadamente, abrindo janelas na barragem do terror, como a mulher que estendia roupa quando começaram os ataques americanos a Bagdad.

Sim, eu sei que serão cada vez mais os que irão repetir que só ao lado de George Bush se pode combater o terrorismo e que não pode haver "hesitações" nem "mas". Aturdidos estamos.

Gostava de estar hoje em Madrid à sua beira, Assis Pacheco, a vê-lo respirar, a assistir à sua respiração. Foi consigo, quando pela primeira vez lá estive, que aprendi a amá-la, à Madrid das "calles" e "plazas", das comidas, das livrarias, dos livros de bolso vendidos no chão, da maravilhosa língua que você adorava, dos cafés, dos jazz bar. A "profissão dominante" juntou-nos lá uma vez - e, em vida, nunca lhe agradeci isso como deve ser. Nos textos de Fernando Assis Pacheco vive o seu amor por toda a Espanha - Assis foi um poeta maior, que por demasiado tempo abdicava de publicar, distribuindo poemas fotocopiados por alguns que entendia privilegiar, chegando ao jornal às oito da manhã e apanhando o autocarro para Campo de Ourique ao fim da tarde, escrevendo na sua máquina, quando já todos arranhávamos o "microsoft word", "cosas preciosas" que ficaram nos arquivos de "O Jornal". "(...) Pode morrer tudo aos poucos/na memória mas nunca Almería/ a praia de basalto e ali ao pé/uma certa fonda de esquina/onde tu e eu emborcámos/caray que óptimo Albariño/com peixe na grelha e do manchego/no pão alvo em grandes fatias/nem aqueles noites de Málaga/em que torcíamos a camisa/ e tu aproveitavas para contar/ metade da tua longa vida (Estradas do Sul, Verão de 58, A Musa Irregular). Sobre Atocha, o melhor texto seria o seu, escrito talvez em português e espanhol, línguas irmanadas.

Ana Sá Lopes, Público.

sexta-feira, 12 de março de 2004

Eu não, mas como o compreendo

Eu Vejo o Herman SIC
 
Aos domingos à noite tenho sempre a mesma dúvida e acabo sempre também por tomar a mesma decisão. Dou o benefício da dúvida ao Herman SIC. Chamem-me masoquista, mas os pequenos (e cada vez mais curtos) momentos de humor vão sendo ainda razão para aguentar muitas das coisas inacreditáveis que o programa tem. Uma opção de difícil defesa até para mim, pelo grande desequilíbrio do programa e porque, no final, acabo por nunca ficar satisfeito com a escolha.
Além da incapacidade de Herman José para fazer um programa do género "talk show" de entretenimento (nas conversas que tem com os seus convidados, ou falha na abordagem, ou nos temas que escolhe, e é deselegante, inoportuno), Herman SIC está virado cada vez mais para dentro e cada vez menos para o espectador. Um exemplo: aquele cartaz com letras de músicas populares alemãs, transportado por duas moças, e que passa repetidamente pelo palco. É claro que Herman José e a sua trupe se divertem com aquilo, mas irrita-me que ignorem quem está do outro lado, retirando o papel que cabe ao espectador. Tem piada uma vez, mas já cansa. Para quem gosta do humor de Herman José, o programa é um falhanço - e nem sequer vou falar do "pseudo" episódio com Lili Caneças. O próprio Herman terá sentido a necessidade de dar espaço ao seu humor e a novas personagens que não cabem na noite de domingo e criou os Papéis ReSIClados. Mas talvez não fosse preciso se o Herman SIC não resvalasse para caminhos para lá do aceitável.

José J. Mateus, Público, Quinta-feira, 11 de Março de 2004

quinta-feira, 11 de março de 2004

Espanha

O terrorismo é uma merda.
Os terroristas são uns filhos da puta.

quarta-feira, 10 de março de 2004

Manuel Rosa

Recebi um convite para a inauguração de uma exposição de escultura de Manuel Rosa.
Manuel é o responsável editorial da Assírio & Alvim. Há muito que não nos presenteava com o seu trabalho no campo das artes plásticas. Como a escultura que dele se conhece é de muito recomendável apreciação, a expectativa é enorme.
Hoje é, portanto, dia de festa. E a festa é na galeria Lino António, Escola António Arroio, às seis horas da tarde.
Lá estarei para dar um abraço ao Manuel e para limpar a vista.
JTD

segunda-feira, 8 de março de 2004

Hoje é dia da mulher

NESTES ÚLTIMOS TEMPOS

Nestes últimos tempos é certo a esquerda fez erros
Caiu em desmandos confusões praticou injustiças

Mas que diremos da longa tenebrosa e perita
Degradação das coisas que a direita pratica?

Que diremos do lixo do seu luxo - de seu
Viscoso gozo da nata da vida - que diremos
De sua feroz ganância e fria possessão?

Que diremos de sua sábia e tácita injustiça
Que diremos de seus conluios e negócios
E do utilitário uso dos seus ócios?

Que diremos de suas máscaras álibis e pretextos
De suas fintas labirintos e contextos?

Nestes últimos tempos é certo a esquerda muita vez
Desfigurou as linhas do seu rosto

Mas que diremos da meticulosa eficaz expedita
Degradação da vida que a direita pratica?

Sophia de Mello Breyner Andressen, Obra Poética. Caminho.

domingo, 7 de março de 2004

Então, não há problema...

Será que este PP é o partido da misóginia colectiva?

«Para o CDS-PP, que na discussão de ontem se fez representar pelo deputado Miguel Paiva, a importância do clitóris é, conforme o próprio disse ao PÚBLICO, "algo subjectiva". O deputado reconhece que tem uma função essencial no prazer sexual mas "para além disso a sua mutilação não afecta nenhuma função vital", nomeadamente, como sublinha, "a função reprodutiva".»

Notícia do PÚBLICO

sexta-feira, 5 de março de 2004

O padre aborto

Um padre de aspecto chunga, resolveu informar as crianças sobre a malvadez do aborto. Vai daí, e toca de imprimir um panfleto com literatura e imagens indescritíveis. A ignorância e a má fé da beatífica criatura chocaram quem viu o execrável documento. A Igreja parece estar com os mesmos problemas do PP - Demasiados animais raivosos à solta.
BN

Tão pouco independente...

O semanário INDEPENDENTE publica hoje na primeira página as fotografias de personagens públicas mostradas aos rapazes da Casa Pia, envolvidos no processo de pedófilia. Todos os portugueses que já apareceram mais do que duas vezes nos jornais estão lá. O titulo diz: "Porquê?". Tudo isto é insinuante e de gosto bastante duvidoso. Não sei o que se diz no miolo do jornal visto não o ter comprado (Era o que faltava, a intenção era esssa). Este jornal parece atravessar uma grave crise, mas fazer tudo e mais alguma coisa para vender papel, é repugnante.
JFC

quinta-feira, 4 de março de 2004

Miguel de Castro

Outro poeta a merecer visita. Miguel de Castro é o pseudónimo literário de Jasmim Rodrigues da Silva.
Homem de grandes qualidades para além da poética, claro. Divertido contador de histórias, cultiva a amizade, o afecto das mulheres:“Esses seres admiráveis”, o gosto pelo bom vinho e pelo apaladado mastigar das iguarias culinárias. Autor do saboroso e único “Bacalhau à Jasmim”, um dos pratos que gosta de preparar para os amigos. Tribo a que tenho a sorte de pertencer. Sadinos

FELICIDADE
Subiste ao meu pescoço de repente
E, sôfrega, beijaste-me na boca.
Foi numa tarde azul... julguei-te louca!
Na rua passeava tanta gente!

Depois. do mesmo modo irreverente
Sussuráste o meu nome com voz rouca,
E de novo senti a tua boca
Deslizando, molhada, a língua quente...

Alugámos um quarto na cidade
Donde se via o mar com velas brancas,
E amei-te, devagar, o corpo nú...

Foram dias de ardente felicidade.
Tinham curvas sensuais as tuas ancas,
Era belo o relevo do teu cu!


Poema do livro OS SONETOS (Estuário, 2002)
JTD

Ai as pedrinhas...


Tempos atrás falámos do problema que são as pedras da calçada soltas, em Lisboa.
Foi então proposto que a CML contratasse Tino de Rans para compor os caminhos da cidade. juntáva-se a fome com a vontade de comer; Tino exercia a sua profissão, e a comunicação social cor-de-rosa a sua, cobrindo a actividade do mais mediático calceteiro. Verificamos que as pedras do chão lisboeta continuam em grande liberdade. Ontem assisti a uma projecção de um dos bloquinhos de pedra sobre uma montra. Foi na baixa. A senhora que inadvertidamente fez o remate, ficou lívida. Mas teve sorte. O vidro da montra aguentou o embate sem quebrar. Esta senhora teve sorte, mas estamos todos sujeitos a que isto nos aconteça. Senhor presidente da câmara, por favor ligue para o Tino. Olhe que o chão de Lisboa está a desfazer-se. Até mesmo os dos caminhos para Belém.
BN

terça-feira, 2 de março de 2004

Uma ferida na existência

Fernando Luis Sampaio é um poeta de grandessíssima qualidade, que só peca pela preguiça. Mas o pouco que publica é, seguramente, do melhor que por aí se vai lendo. Manuel de Freitas, no EXPRESSO, diz: "O que distingue F.L.Sampaio, para lá da prudência rara com que tem publicado, é a riqueza contida e quase asfixiante das imagens e uma equilibrada tensão expressiva que sugere, não poucas vezes, a proximidade do silêncio"
Deixo aqui um poema do seu mais recente livro.

Deixa o dia cerrar fileiras
depois do cansaço reúne
em teu redor o seu fulgor
derradeiro
Uma camisa aqui, a escova de dentes,
livros, no chão a alma
suficiente para novos lábios
desfazerem o ferido afecto.

A tua vida espalha-se como o mercúrio
solto há-de voltar a juntar-se
por virtude tua ou coragem

porque mesmo derrotado
o sonho é um abrigo iluminado pela inquietude,
uma ferida na existência.


Escadas de Incêndio, Quetzal, 2000.
JTD

segunda-feira, 1 de março de 2004

Falso Retrato de Andy Warhol

não penso
transcrevo conversas telefónicas ou falo
com a noite de new york
ou não falo e gravo a voz dos outros filmo
obsessivamente a morte
ou não filmo e multiplico cadeiras eléctricas
excito-me
sou o centro do mundo dos outros e
não existo
ou é a vida que me atravessa o sexo
e finjo a morte ou cintilo
como o diamante

Al Berto, "O Medo". Contexto-1991